A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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durante a noite. Cortinas divisórias oferecem privaci<strong>da</strong>de conforme desejado, mas a presença de outros seres<br />
humanos permite que se desenvolva uma espécie de comuni<strong>da</strong>de; uma comuni<strong>da</strong>de basea<strong>da</strong> em assistir outros<br />
enfrentando a morte numa atmosfera de confiança, e não de medo servil. Os quartos contêm mobília compra<strong>da</strong> em<br />
uma loja de departamentos, e não em um catálogo institucional. As janelas <strong>da</strong> frente emolduram um parque<br />
tratado segundo a melhor tradição inglesa; as de trás olham para um jardim florido e um tanque com peixinhos<br />
dourados.<br />
O visitante do asilo vê sinais de vi<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> parte: funcionários reunidos ao re<strong>dor</strong> de um leito cantando<br />
"Parabéns pra Você", trabalhos de arte pendurados em ca<strong>da</strong> espaço vazio <strong>da</strong>s paredes, uma pequena floresta de<br />
plantas em vasos, o cocker spaniel de estimação de um paciente fazendo travessuras durante uma visita. A ca<strong>da</strong><br />
duas semanas mais ou menos a equipe do asilo organiza um concerto, com um quarteto de cor<strong>da</strong>s, um harpista ou<br />
um coral de crianças visitando os quartos. Voluntários transportam os pacientes capazes ao McDonald's local ou a<br />
um restaurante, dependendo <strong>da</strong> preferência deles. Na medi<strong>da</strong> do possível, o St. Christopher funciona de acordo<br />
com a conveniência dos pacientes, e não dos funcionários.<br />
O meu dia no St. Christopher convenceu-me de que a explosão de Therese Vanier no painel em Dallas fora<br />
plenamente justifica<strong>da</strong>. Nem mesmo a pior <strong>dor</strong> imaginável, a <strong>dor</strong> severa que acompanha a doença terminal,<br />
precisa debilitar. Percebi que a Dama Cicely, a dra. Vanier e outros no St. Christopher haviam incorporado quase<br />
tudo o que eu aprendera sobre o gerenciamento <strong>da</strong> <strong>dor</strong> e mais ain<strong>da</strong>. Eles permitem diversão e distração<br />
consciente. Aju<strong>da</strong>m a suavizar os fatores subjetivos (medo, ansie<strong>da</strong>de) que contribuem para a <strong>dor</strong>. Trabalham<br />
duro para fazer o paciente sentir-se como um parceiro, e não uma vítima, alguém que mantém o controle sobre o<br />
seu próprio corpo. Criam uma comuni<strong>da</strong>de que se importa.<br />
Numa palavra, o movimento pró-asilo mudou o foco <strong>da</strong> medicina <strong>da</strong> cura para o cui<strong>da</strong>do. Daniel Callahan<br />
criticou a medicina contemporânea justamente por esta falha:<br />
A principal segurança que todos desejamos é que, quando - doentes, seremos cui<strong>da</strong>dos sem levar em consideração<br />
a probabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cura... O maior fracasso dos cui<strong>da</strong>dos contemporâneos com a saúde é a tendência de ignorar<br />
este ponto, substituindo-o pelo fascínio <strong>da</strong> cura e <strong>da</strong> guerra contra a doença e a morte. No centro dos cui<strong>da</strong>dos<br />
deve encontrar-se um compromisso de nunca desviar os olhos, ou lavar as mãos, de alguém que sente <strong>dor</strong> ou está<br />
sofrendo, que é incapaz ou inepto, que é retar<strong>da</strong>do ou demente; esse é... o único compromisso que um sistema de<br />
cui<strong>da</strong>dos com a saúde pode quase sempre tomar com todos, a única necessi<strong>da</strong>de que pode razoavelmente<br />
satisfazer...<br />
O St. Christopher, produto <strong>da</strong> profun<strong>da</strong> compaixão de uma mulher cristã, mostra o que pode ser feito. Muitos<br />
grupos de igreja e <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de seguiram o modelo <strong>da</strong> Dama Cicely e estendem agora cui<strong>da</strong>do amoroso aos<br />
doentes terminais que escolheram não aceitar métodos artificiais de prolongamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Por definição, esses<br />
pacientes estão além <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de cura médica. To<strong>da</strong>via, o asilo encontrou um meio de tratar esta<br />
angustiosa condição humana com digni<strong>da</strong>de e compaixão. Dama Cicely tem orgulho do fato de 95 por cento dos<br />
pacientes do St. Christopher conseguirem manter-se alertas e livres <strong>da</strong> <strong>dor</strong>. Demonstrou que é possível desarmar o<br />
último grande medo que todos iremos enfrentar — o medo <strong>da</strong> morte e <strong>da</strong> <strong>dor</strong> que a acompanha.<br />
Notas<br />
1 Para <strong>da</strong>r apenas um exemplo, se por algum decreto estranho nós médicos fôssemos forçados a escolher pessoalmente 1) o sistema de imunização humano<br />
apenas ou 2) todos os recursos e tecnologia <strong>da</strong> ciência mas com a per<strong>da</strong> de nosso sistema de imunização, iríamos sem hesitar escolher o primeiro. A AIDS<br />
mostra a impotência de to<strong>da</strong> a tecnologia moderna quando o sistema de imunização do indivíduo se interrompe: pneumonia, aftas na boca e até diarreia<br />
podem constituir um perigo mortal.<br />
2 Uma droga como o ópio ou a morfina geralmente não produz efeitos alucinatórios se utiliza<strong>da</strong> para alívio <strong>da</strong> <strong>dor</strong>. Por razões ain<strong>da</strong> não inteiramente<br />
compreendi<strong>da</strong>s, os narcóticos usados para tratamento <strong>da</strong> <strong>dor</strong> não resultam geralmente em vício. Um estudo publicado em 1982 informou sobre doze mil<br />
pacientes de um hospital de Boston que receberam analgésicos narcóticos: apenas quatro se tornaram viciados nas drogas que receberam enquanto eram<br />
pacientes. Estudos também mostram que os pacientes que controlam seu próprio acesso a narcóticos injetados usam menos do que a equipe do hospital<br />
teria administrado.<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 158