A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
caminho íngreme e escorregadio ou numa geringonça chama<strong>da</strong> dholi, pendura<strong>da</strong> em varas de bambu suspensas<br />
nos ombros dos carrega<strong>dor</strong>es. Por ficar com os olhos no nível <strong>da</strong>s reluzentes pernas deles, eu via seus dedos do pé<br />
se enterrarem no solo lamacento e suas pernas apartarem as samambaias e as grandes moitas de verbenas.<br />
Observava especialmente as pequenas sanguessugas, delga<strong>da</strong>s como fios de se<strong>da</strong>, que pulavam do mato, se<br />
agarravam àquelas pernas e gradualmente inchavam com o sangue. Os carrega<strong>dor</strong>es não pareciam se importar (as<br />
sanguessugas injetam um elemento químico que controla os coágulos e a <strong>dor</strong>), mas minha irmã e eu por pura<br />
repugnância examinávamos nossas pernas a to<strong>da</strong> hora para detectar sinais de hóspedes indesejados.<br />
Finalmente chegamos a um povoado bem no alto <strong>da</strong>s Kolli Malai, a 2.400 metros acima do vale. Os carrega<strong>dor</strong>es<br />
depositaram nossos pertences na varan<strong>da</strong> de um chalé de madeira, a casa em que eu vivera desde o meu<br />
nascimento, em 1914.<br />
LINGUAGEM COMUM<br />
Meus pais foram para a Índia como missionários, morando inicialmente num posto na planície. Embora meu pai<br />
tivesse estu<strong>da</strong>do para ser construtor, ele e minha mãe fizeram um breve curso preparatório de medicina. Quando a<br />
notícia foi <strong>da</strong><strong>da</strong>, os nativos começaram a chamá-los de "doutor e doutora", e uma fila constante de indivíduos<br />
doentes começou a formar-se em nossa porta. Os boatos <strong>da</strong>s habili<strong>da</strong>des médicas dos estrangeiros se espalharam<br />
pelas cinco cadeias de montanhas, <strong>da</strong>s quais a Kolli Malai era a mais misteriosa e temi<strong>da</strong>: misteriosa porque<br />
pouca gente <strong>da</strong> planície havia subido além do amontoado de nuvens que geralmente envolvia os picos <strong>da</strong> Kolli,<br />
temi<strong>da</strong> porque aquela zona climática abrigava o mosquito Anopheles, porta<strong>dor</strong> <strong>da</strong> malária. O próprio nome Kolli<br />
Malai significava "montanhas <strong>da</strong> morte". Passar uma única noite ali iria expor o visitante à febre mortal, era o que<br />
se dizia.<br />
A despeito desses avisos, meus pais mu<strong>da</strong>ram para os morros onde, conforme souberam, vinte mil pessoas viviam<br />
sem acesso a cui<strong>da</strong>dos médicos. Passamos a morar numa colônia quase to<strong>da</strong> construí<strong>da</strong> pelas mãos de meu pai.<br />
(Seis carpinteiros subiram <strong>da</strong>s planícies para ajudá-lo, mas cinco logo frigiram, com medo <strong>da</strong> febre.) Em pouco<br />
tempo meus pais abriram uma clínica, uma escola e uma igreja cerca<strong>da</strong> por muros de barro. Abriram também um<br />
local para abrigar crianças abandona<strong>da</strong>s — as tribos <strong>da</strong> montanha deixavam as crianças indeseja<strong>da</strong>s ao lado <strong>da</strong><br />
estra<strong>da</strong> — e algo semelhante a um orfanato logo se formou.<br />
Para uma criança, as montanhas Kolli eram o paraíso. Eu corria descalço pelos penhascos rochosos, subia em<br />
árvores até que minhas roupas ficassem cobertas de seiva. Os meninos nativos me ensinaram a pular como um<br />
macaco no lombo de um búfalo domesticado e correr com o animal pelos campos. Perseguíamos lagartos e sapos<br />
coaxantes nos arrozais até que Tata, guar<strong>da</strong> dos terraços, nos expulsava.<br />
Eu fazia minhas lições escolares numa casa na árvore. Minha mãe amarrava as lições numa cor<strong>da</strong> para eu levantálas<br />
até minha classe particular bem no alto de uma jaqueira. Meu pai me ensinava os mistérios do mundo natural:<br />
os cupins [térmitas] que ele frustrara ao construir nossa casa sobre estacas protegi<strong>da</strong>s por frigideiras emborca<strong>da</strong>s,<br />
as lagartixas de pés grudentos que se penduravam nas paredes de meu quarto, o ágil pássaro-costureiro que<br />
costurava folhas com o bico, usando pe<strong>da</strong>cinhos de talos de grama como linha.<br />
Certa vez, meu pai me levou a uma colônia de cupins, com seus montículos altos enfileirados como canos de<br />
órgão, e abriu uma grande janela para mostrar-me as colunas arquea<strong>da</strong>s e os corre<strong>dor</strong>es sinuosos em seu interior.<br />
Ficamos deitados de barriga para baixo, com o queixo apoiado nas mãos e observamos os insetos correrem para<br />
consertar sua delica<strong>da</strong> arquitetura. Dez mil pernas trabalhavam juntas como se coman<strong>da</strong><strong>da</strong>s por um único cérebro,<br />
to<strong>da</strong>s frenéticas, exceto a rainha, grande e redon<strong>da</strong> como uma salsicha, que permanecia deita<strong>da</strong> e indiferente,<br />
botando ovos.<br />
Para meu entretenimento eu tinha uma planta carnívora, verde brilhante, tingi<strong>da</strong> de vermelho, que se fechava<br />
sempre que eu jogava uma mosca dentro dela. Durante minha sesta <strong>da</strong> tarde, eu ficava ouvindo os ratos e as<br />
cobras verdes an<strong>da</strong>ndo pelas traves do teto e por trás do fogão. Algumas vezes, à noite, eu lia meu livro à luz de<br />
insetos, encostando-o ao vidro cheio de vaga-lumes.<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 14