A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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estava de pé sozinha, desafia<strong>dor</strong>a, em meio a vários quarteirões de escombros.<br />
Uma outra noite, bombas foram joga<strong>da</strong>s no University College. Fragmentos dessas bombas <strong>da</strong>nificaram<br />
seriamente os alojamentos dos médicos residentes, o que poucos lamentaram: as janelas fecha<strong>da</strong>s por tijolos<br />
tornavam os quartos intoleravelmente abafados, por isso ficamos felizes em mu<strong>da</strong>r. O que nos entristeceu foi o<br />
fato de a biblioteca <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de, a terceira melhor em to<strong>da</strong> a Inglaterra, ter se queimado completamente.<br />
Além do dever de vigília, os estu<strong>da</strong>ntes de medicina eram chamados para tratar as vítimas dos bombardeios.<br />
Durante os ataques aéreos mais pesados, os residentes ficavam de plantão to<strong>da</strong>s as noites. Os ver<strong>da</strong>deiros<br />
cirurgiões tratavam <strong>da</strong>s fraturas complexas e <strong>da</strong>s queimaduras de terceiro grau, enquanto os juniores trabalhavam<br />
extraindo pe<strong>da</strong>ços de vidro <strong>da</strong>s pessoas que se achavam perto de uma janela quando uma bomba caía. Lembro-me<br />
do zela<strong>dor</strong> de uma igreja que recebeu fragmentos de um vitral no rosto, peito e abdome. Ele brincou conosco:<br />
— Você consegue dizer se é Jesus ou a Virgem Maria pelo desenho do vidro que está removendo?<br />
Depois de atender às vítimas, conseguíamos <strong>dor</strong>mir algumas horas antes do desjejum — certas vezes num colchão<br />
"sanduíche" para abafar o ruído <strong>da</strong>s bombas — e então, depois de incontáveis xícaras de café, começava o regime<br />
diurno de estudos e trabalho clínico nas enfermarias. Eu segui essa rotina durante vários meses até que cheguei ao<br />
ponto de ter um colapso físico.<br />
Certa manhã, enquanto lia a ficha de um paciente, perguntei à enfermeira:<br />
— Quem receitou este se<strong>da</strong>tivo?<br />
Ela respondeu:<br />
— Foi o senhor.<br />
Apavorado, ouvi o relato que me fez <strong>da</strong> noite anterior: ela me acor<strong>da</strong>ra, descrevera os sintomas do paciente e<br />
depois tomara nota <strong>da</strong> minha receita resmunga<strong>da</strong>. Eu não me lembrava de modo algum do incidente. Devia estar<br />
funcionando em algum nível subconsciente e falando enquanto <strong>dor</strong>mia. Felizmente, eu tomara uma decisão<br />
razoável e a dose era plausível, mas eu sabia que não podia prejudicar meus pacientes. Pedi e recebi uma licença<br />
de duas semanas.<br />
Peguei um trem para Cardiff e fui até a casa familiar que pertencia à minha antiga senhoria, Vovó Morgan. Ela era<br />
uma ver<strong>da</strong>deira excêntrica — muito charmosa, muito galesa, muito sur<strong>da</strong> e muito batista. Vovó Morgan carregava<br />
consigo uma trombeta auditiva de metal que media cerca de 45 centímetros de comprimento e se prolongava de<br />
sua cabeça como um chifre de carneiro. Com medo de ser apanha<strong>da</strong> de camisola durante uma incursão aérea, ela<br />
<strong>dor</strong>mia com to<strong>da</strong>s as suas roupas. Em vez de mu<strong>da</strong>r de saias, o que poderia ser imodesto (uma bomba poderia<br />
atingir a casa enquanto se vestia), ela as usava em cama<strong>da</strong>s, saias de baixo e saias pretas de cima, to<strong>da</strong>s coloca<strong>da</strong>s<br />
umas sobre as outras. Apesar <strong>da</strong> sua excentrici<strong>da</strong>de, ou talvez por causa dela, Vovó Morgan se tornara uma amiga<br />
queri<strong>da</strong>, servindo como uma espécie de mãe substituta para os alunos durante nosso interlúdio em Cardiff.<br />
A Vovó Morgan certamente sabia como li<strong>da</strong>r com um estu<strong>da</strong>nte de medicina exausto. Ela me alimentou, mimou e<br />
me deixou <strong>dor</strong>mir sem ser perturbado de 16 a 20 horas por dia. Fez mais uma coisa durante aquela visita:<br />
convenceu-me de que eu precisava de uma esposa.<br />
— Você não pode achar ninguém melhor do que Margaret Berry — disse Vovó. — Ela vai cui<strong>da</strong>r de você.<br />
Margaret era uma encanta<strong>dor</strong>a colega que me servira de tutora durante o primeiro e difícil ano de mu<strong>da</strong>nça do<br />
trabalho de construção para a escola de medicina. Ela fora evacua<strong>da</strong> para Cardiff um ano depois de mim, e eu a<br />
pusera em contato com Vovó Morgan. Vovó perguntou minha opinião sobre casar-me com Margaret e virou a<br />
trombeta auditiva em minha direção. Gritei que teria de pensar no assunto. Na ver<strong>da</strong>de, porém, várias vezes eu me<br />
imaginara casando com Margaret Berry e quanto mais pensava sobre isso, tanto mais gostava <strong>da</strong> ideia. Depois de<br />
duas semanas de repouso, voltei a Londres e me preparei para procurá-la. Apaixonamo-nos e um ano depois nos<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 36