A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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<strong>da</strong>nos possíveis e depois morreram. Para nossos propósitos, o corpo dele era ideal.<br />
Sabíamos que tínhamos de nos apressar. Havíamos prometido ao superintendente de Chingleput terminar nossa<br />
tarefa de madruga<strong>da</strong>, agora só faltavam quatro horas, para que os ritos religiosos normais pudessem prosseguir.<br />
Penduramos a lanterna na trave do teto e colocamos aventais e luvas de borracha. Em poucos segundos estávamos<br />
cobertos de suor. O corpo ficara naquele local sem ventilação o dia inteiro sob um sol escal<strong>da</strong>nte e, utilizando um<br />
eufemismo, alcançava rapi<strong>da</strong>mente um estado de excessivo amadurecimento. O cenário — uma noite silenciosa e<br />
enluara<strong>da</strong>, o calor, o isolamento, um cadáver cheio de germes — parecia um filme de horror.<br />
Dividimos o trabalho. A dra. Buultgens trabalhava de um lado, retirando espécimes dos nervos a ca<strong>da</strong> 2,5<br />
centímetros para estudo posterior no microscópio. O técnico escrevia etiquetas detalha<strong>da</strong>s e colocava ca<strong>da</strong> pe<strong>da</strong>ço<br />
de nervo em um frasco de formalina. Eu trabalhava do lado oposto e não retirava espécimes. Queria ver os nervos<br />
inteiros e detalha<strong>da</strong>mente em relação aos ossos e músculos. Os procedimentos rápidos e grosseiros <strong>da</strong> autópsia<br />
contrariavam todos os meus instintos cirúrgicos, mas eu sabia que aquele corpo só continha uma coisa de valor<br />
para nós: os nervos. Depois de fazer longos cortes laterais no braça e na perna, removi a pele, gordura e músculos,<br />
prendendo o tecido no lado à medi<strong>da</strong> que prosseguia.<br />
Durante pelo menos três horas, dissecamos a to<strong>da</strong> pressa, cortando profun<strong>da</strong>mente até chegar aos nervos,<br />
retirando amostras, segurando com grampos o tecido. Esperávamos expor ca<strong>da</strong> nervo periférico <strong>da</strong>s mãos e dos<br />
pés, passando pelo cotovelo e ombro, pela coxa e quadril, até as raízes nervosas que emergiam <strong>da</strong> coluna espinhal.<br />
Só depois de ter retirado algumas amostras de todos os nervos afetados pela lepra podíamos começar a relaxar.<br />
Nós três mal falávamos. Os únicos sons emitidos eram o tinido dos instrumentos e o lamento alto <strong>da</strong>s cigarras lá<br />
fora. Ao terminar os braços do homem, fomos para as pernas e finalmente para o rosto. Minha mente se reportou<br />
ao meu projeto em Cardiff, País de Gales, mas dessa vez expus apenas o quinto e o sétimo nervos faciais, em<br />
busca de alguma pista para explicar por que as pálpebras ficavam logo paralisa<strong>da</strong>s.<br />
Completamos finalmente nosso objetivo. Endireitei-me e senti como se acabasse de ser esfaqueado. A tensão <strong>da</strong><br />
viagem, combina<strong>da</strong> com a minha postura curva<strong>da</strong> durante a autópsia, havia cobrado seus dividendos em minhas<br />
costas. Eu não <strong>dor</strong>mia fazia 24 horas, e meus olhos ardiam com as constantes gotas de suor. Respirei fundo<br />
algumas vezes, meu nariz agora habituado ao cheiro rançoso do pequeno aposento.<br />
A luz <strong>da</strong> lanterna de querosene iluminava o corpo, e os nervos frescos, expostos, brilhavam em contraste com o<br />
tecido escuro do corpo. Os primeiros raios de luz acinzenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong> estavam surgindo por sobre as<br />
montanhas, filtrando-se através <strong>da</strong> porta aberta. Enxuguei a testa com um lenço e estiquei os músculos contraídos<br />
em minhas costas e dedos. O sol nascente subiu repentinamente sobre os montes e jorrou pela porta, iluminando<br />
tudo o que até então tínhamos visto apenas nos círculos débeis <strong>da</strong> lanterna. Meus olhos subiram e desceram,<br />
examinando ca<strong>da</strong> braço e perna, revendo nosso trabalho artesanal. Eu não estava procurando na<strong>da</strong> em particular,<br />
simplesmente aproveitava uma folga a fim de reunir forças para a fase final <strong>da</strong> autópsia.<br />
De repente vi.<br />
— Olhe os inchaços do nervo — disse à dra. Buultgens. — Está vendo o padrão?<br />
Uma anormali<strong>da</strong>de impressionante era facilmente visível. Ela curvou-se sobre o lado do corpo em que eu havia<br />
trabalhado, examinando com atenção o comprimento lustroso dos nervos e depois acenou entusiasma<strong>da</strong>. Em<br />
certos pontos — por trás do tornozelo, logo acima do joelho e também no pulso — os nervos haviam inchado<br />
muitas vezes mais do que o tamanho normal. Inchaços também se projetavam nos ramos nervosos faciais do<br />
queixo e osso malar, sendo mais marcados logo acima do cotovelo no nervo ulnar.<br />
Nós dois sabíamos que os nervos inchavam, reagindo a uma infestação de germes <strong>da</strong> lepra, mas agora víamos<br />
claramente que os inchaços dos nervos tendiam a ocorrer apenas em alguns lugares. De fato, os inchaços só<br />
existiam onde o nervo ficava próximo <strong>da</strong> superfície <strong>da</strong> pele, e não nos tecidos profundos. O nervo ulnar, que<br />
sofrera paralisia, inchara muito no cotovelo. O nervo mediano, a poucos centímetros de distância, parecia em<br />
ordem — talvez por estar localizado 2,5 centímetros mais fundo, por baixo do tecido muscular. Pela primeira vez<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 64