A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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Ronald Melzack conta outra anomalia cultural: No leste <strong>da</strong> Africa, homens e mulheres submetem-se a uma<br />
operação, completamente sem anestesia ou remédios alivia<strong>dor</strong>es <strong>da</strong> <strong>dor</strong> — chama<strong>da</strong> "trepanação", na qual o couro<br />
cabeludo e músculos subjacentes são cortados de maneira a expor uma grande área do crânio. Este é então<br />
raspado pelo doktari enquanto a pessoa fica senta<strong>da</strong> calmamente, sem mostrar medo e sem caretear, segurando<br />
uma panela sob o queixo para receber o sangue que escorre. Assistir aos filmes desse procedimento é algo<br />
extraordinário pelo desconforto que induzem nos observa<strong>dor</strong>es, o que contrasta grandemente com a aparente falta<br />
de desconforto <strong>da</strong>s pessoas sujeitas à operação. Não há motivo para crer que essas pessoas sejam fisiologicamente<br />
diferentes em na<strong>da</strong>. Pelo contrário, a operação é aceita pela sua cultura como um procedimento que alivia a <strong>dor</strong><br />
crônica.<br />
Os africanos do leste <strong>da</strong> Africa dominaram ver<strong>da</strong>deiramente a arte <strong>da</strong> cirurgia sem anestesia? Qual a <strong>dor</strong> mais<br />
"real", a descrita por uma mãe que dá à luz na Europa ou a de um pai que pratica o couvade na Micronésia?<br />
Ambos os exemplos demonstram o poder misterioso <strong>da</strong> mente humana em sua interpretação e reação à <strong>dor</strong>.<br />
OS ENIGMAS DA DOR<br />
Se eu já tive dúvi<strong>da</strong>s sobre a capaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mente para modificar e prevalecer sobre as mensagens de <strong>dor</strong>, três<br />
encontros — dois nos meus dias na Índia e um na escola de medicina em Londres — fizeram desaparecer essas<br />
dúvi<strong>da</strong>s.<br />
Lobotomia<br />
Em 1946, enquanto eu completava a residência cirúrgica, um neuropsiquiatra americano, Walter Freeman,<br />
descobriu um meio simplificado de realizar uma lobotomia, uma cirurgia no cérebro tenta<strong>da</strong> primeiro por médicos<br />
italianos uma déca<strong>da</strong> antes. Os grandes lobos frontais nos seres humanos são responsáveis pelo pensamento<br />
refletivo e a interpretação. O córtex cerebral controla a reação direta à <strong>dor</strong>, mas os lobos frontais podem modificar<br />
essa resposta, cujo processo é grandemente afetado por uma lobotomia pré-frontal.<br />
Depois de praticar num cadáver, Freeman escolheu como seu primeiro paciente uma mulher esquizofrênica. Ele<br />
usou a eletro-convulsoterapia para atordoar a paciente durante alguns minutos e escolheu como instrumento<br />
cirúrgico um quebra<strong>dor</strong> de gelo, com o nome "Uline Ice Company" bem visível no cabo. Levantou a pálpebra<br />
direita <strong>da</strong> mulher e passou o quebra<strong>dor</strong> sobre o alto do globo ocular. Encontrando alguma resistência na placa<br />
orbital, penetrou-a batendo no quebra<strong>dor</strong> com um martelo pequeno. Uma vez dentro do cérebro, girou o<br />
instrumento para a frente e para trás, cortando vias neuroniais entre os lobos frontais e o resto do cérebro.<br />
A mulher acordou alguns minutos depois e pareceu tão satisfeita com o resultado que voltou dentro de uma<br />
semana para o mesmo tratamento através <strong>da</strong> outra órbita. Freeman escreveu laconicamente ao filho: "Tratei de<br />
dois pacientes de ambos os lados e de outro de um só lado sem encontrar quaisquer complicações, exceto um olho<br />
negro em um caso. E possível que surjam problemas posteriores, mas pareceu bem fácil, embora tenha sido uma<br />
coisa definitivamente desagradável de observar".<br />
Freeman ganhou fama nos anos 1950 e 1960, <strong>da</strong>ndo palestras e demonstrando lobotomias a grupos de psicólogos<br />
e neurologistas. Ele gabou-se de que o procedimento podia aju<strong>da</strong>r na cura <strong>da</strong> esquizofrenia, depressão,<br />
reincidência criminosa e <strong>dor</strong> crônica. Aprecia<strong>dor</strong> dos holofotes, Freeman algumas vezes punha a mão no bolso e<br />
tirava um martelo de carpinteiro normal para seu uso. Conseguiu reduzir o tempo do procedimento a sete minutos<br />
e certa vez realizou uma "lobotomia de emergência" para subjugar um criminoso violento que estava sendo<br />
contido por policiais no chão de um quarto de hotel. A psicocirurgia só caiu em descrédito depois que<br />
medicamentos eficazes chegaram ao mercado. (Freeman, ferido com a crescente rejeição de sua técnica, rotulou<br />
desdenhosamente os novos tratamentos de "lobotomia química".)<br />
Eu empalideço agora quando leio relatos sobre as primeiras psicocirurgias, um campo que florescia justamente<br />
quando comecei a estu<strong>da</strong>r medicina. Tive contato limitado com pacientes lobotomizados, mas enquanto me<br />
achava na Índia, vi a dramática evidência do efeito <strong>da</strong> lobotomia sobre a <strong>dor</strong> em um paciente. Uma inglesa de<br />
Bombaim havia buscado alívio durante anos para uma <strong>dor</strong> vaginal intratável. A princípio ela sentia a <strong>dor</strong> no<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 129