A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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conselheiros nos centros de <strong>dor</strong> crônica relatam que seus pacientes mais "inclinados à <strong>dor</strong>" possuem sentimentos<br />
profun<strong>da</strong>mente arraigados de culpa e podem perfeitamente interpretar a sua <strong>dor</strong> como uma forma de castigo.<br />
Tenho alguma experiência pessoal com a <strong>dor</strong>-como-castigo, pois estudei no sistema inglês de escola pública<br />
quando ain<strong>da</strong> se recorria às surras para reforçar a disciplina. Quando havia acabado de chegar <strong>da</strong>s montanhas<br />
Kolli na Índia, tive de submeter-me a um processo de "civilização" em Londres que incluiu vários encontros<br />
diretos com castigos físicos. Em retrospecto, reconheço que a intensi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>dor</strong> infligi<strong>da</strong> por uma vara fina de<br />
madeira batendo no tecido gorduroso do traseiro não vai além de seis ou talvez sete numa escala de dez. Na<br />
época, entretanto, parecia como um nove ou dez especialmente se eu sentia ira real <strong>da</strong> pessoa que aplicava os<br />
golpes. Estou certo de que o aspecto do castigo, especialmente o sentimento de castigo injusto — Por que fui o<br />
único apanhado? —, intensificava minha percepção <strong>da</strong> <strong>dor</strong>.<br />
Mais ou menos nessa época, aprendi pela primeira vez o resultado de acreditar que as tragédias humanas<br />
acontecem como um ato direto de Deus. Eu tinha quinze anos e havia acabado de voltar de uma longa caminha<strong>da</strong><br />
num prado perto de Londres quando minha tia Emily encontrou-se comigo na porta.<br />
— Venha para a sala de jantar, Paul — disse ela, e pude perceber pelo seu rosto aflito que alguma coisa horrível<br />
acontecera.<br />
Quando a segui até o aposento vitoriano escuro e pesado, concluí que deveria ter feito algo detestável porque o tio<br />
Bertie também se achava ali, com minha tia Hope. Minhas tias solteiras só chamavam o tio Bertie, um homem<br />
enorme e pai de treze filhos, quando pensavam que eu precisava de uma influência masculina brusca e severa.<br />
Minha mente girava em ritmo frenético: — O que será que eu fiz?<br />
Fiquei logo sabendo que não fizera na<strong>da</strong>. Os três adultos se reuniram para contar-me sobre o telegrama recebido<br />
<strong>da</strong> Índia, anunciando que meu pai morrera de malária. Naquele dia e nos seguintes, minhas tias fizeram várias<br />
tentativas de explicar e suavizar o golpe recebido, usando chavões beatos que esperavam iriam consolar-me.<br />
Minha mente jovem encontrou, porém, meios de transformar as palavras reconfortantes delas em acusações<br />
maldosas.<br />
— Seu pai era um homem maravilhoso, bom demais para este mundo.<br />
Mas e o resto de nós — isso significa que não somos suficientemente bons?<br />
— Deus precisava mais dele no céu do que nós precisamos na terra.<br />
— Não! Não vejo meu pai há seis anos. Preciso do meu pai!<br />
— Seu trabalho aqui terminou.<br />
— Isso não pode ser ver<strong>da</strong>de! A igreja mal começou e o ministério <strong>da</strong> medicina está crescendo. Quem vai cui<strong>da</strong>r<br />
do povo <strong>da</strong>s montanhas agora? E minha mãe?<br />
— É para o bem.<br />
— Como, diga-me como, pode ser para o bem?<br />
Foram necessários muitos anos para a minha fé infantil recuperar-se dos golpes de bon<strong>da</strong>de de minhas tias. Eu<br />
sentia que se Deus tinha decidido "levar meu pai" como elas insistiam em dizer, a culpa de alguma forma era<br />
minha. Deveria ter necessitado mais dele, ou pelo menos me esforçado mais para convencer a Deus de que amava<br />
meu pai. Enquanto isso, minha mãe, na outra metade do mundo, carregava seu próprio fardo de culpa: Se eu ao<br />
menos o tivesse levado para receber tratamento médico adequado imediatamente e não tivesse protelado. 2<br />
Quando fui recebê-la no porto, mais de um ano depois, podia facilmente ler a <strong>dor</strong> em sua postura curva<strong>da</strong> e suas<br />
rugas prematuras.<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 166