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ENTRE SILÊNCIOS, NÓDOAS E COBIÇA - CCHLA - Universidade ...

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172<br />

A velha e gloriosa corveta - que pena! - já nem sequer lembrava o<br />

mesmo navio d’outrora sugestivamente pitoresco, idealmente<br />

festivo, como uma galera de lenda branca e leve no alto mar<br />

grimpando serena o corcovo das ondas! (...). Estava outra, muito<br />

outra, com seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo,<br />

sem aquele esplêndido aspecto guerreiro que entusiasmava a gente<br />

nos bons tempos de “patescaria”. Vista ao longe, na infinita<br />

extensão azul, dir-se-ia, agora, a sombra fantástica de um barco<br />

aventureiro. (BC, p.9)<br />

Deste modo, podemos observar que os adjetivos ‘velha’, ‘negro’ e<br />

‘encardido’ estão, de fato, aqui associados a algo marcado negativamente, se opondo<br />

aos adjetivos ‘gloriosa’, ‘branca’ e ‘leve’. A corveta, comparada com “a sombra de um<br />

barco aventureiro”, simboliza justamente o tráfico negreiro, nódoa indelével do<br />

comércio de escravos negros que tornava suja a história dos mais de trezentos anos do<br />

Brasil colônia e da recém ex-colônia. O pensamento de correntes teóricas que<br />

apregoavam a supremacia da raça branca e que estava nas entranhas do discurso<br />

colonial aportara em terras brasileiras advindas do outro lado do Atlântico, ou seja,<br />

exatamente dos países imperialistas da Europa Ocidental. A teoria do<br />

embranquecimento da raça brasileira aliava-se ao projeto de erguer nos trópicos um país<br />

grandioso isento da “mácula” “negra”, herança africana.<br />

Assim, “o seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo”, também<br />

nos dá indício de que a corveta carrega algo negativo em seu interior. Apesar desta<br />

pertencer à Marinha Imperial, o tratamento recebido pelos marinheiros de “Sua<br />

Majestade” pouco diferia daquele recebido pelos navios negreiros que trafegavam em<br />

nossos mares. A violência recebida pelos tripulantes, a falta de higiene e o caos que<br />

imperava nas relações perpetradas no interior da corveta beiravam os píncaros da<br />

crueldade. Na verdade, o narrador desvela sem rodeios o agir desumanizante que era<br />

inferido aos marujos da baixa hierarquia da Marinha Imperial e entre estes havia muitos<br />

negros fugitivos das lavouras do café.<br />

Continua o narrador a descrever as punições perpetradas aos marujos, à vista<br />

de todos, no convés da corveta. Os tormentos sofridos pelos engajados da baixa<br />

hierarquia são detalhados em pormenores pelo narrador: “o comandante, depois de um<br />

breve discurso em que as palavras “disciplina e ordem” repetiam-se, fez um sinalzinho<br />

com a cabeça e logo o oficial imediato, um louro, de bigode, começou a leitura do<br />

Código na parte relativa a castigos corporais” (BC, p.12). Logo após esta abertura<br />

antológica da obra, o narrador nos introduz o protagonista, cuja alcunha dá título à

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