ACTAS
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I Congreso Internacional de Periodismo 91<br />
Os cinco sentidos de Kapuscinski<br />
Repórter de guerra, correspondente internacional, autor de vários livros e professor da Fundación Nuevo<br />
Periodismo Iberoamericano (a escola de jornalismo fundada por Gabriel García Márquez, em 1995, em Cartagena<br />
das Índias, na Colômbia), Ryszard Kapuscinski considera o jornalismo como um gênero literário e afirma<br />
que a crônica e a reportagem são formatos ideais para contar histórias que também são notícias.<br />
Nesta época em que a informação flui como um oceano que se perde de vista, acreditamos que aquilo que está<br />
chamado a se destacar, manter-se e dignificar um ofício que parece extraviado em meio a tantas mudanças, são<br />
os relatos jornalísticos bem contados a partir de uma perspectiva de autor onde se combina um trabalho cuidadoso<br />
de reportagem e investigação com um olhar e uma voz independente e criativa para dar forma histórias que<br />
não somente busquem representar, mas também explicar a realidade (Kapuscinski, 2003, p. 42, tradução nossa).<br />
Com essas palavras, o autor corrobora o pensamento de Medina a respeito do ato presencial. Estar presente é<br />
o primeiro mandamento. Em seguida, ver (olhar, enxergar, observar). Depois, é preciso ouvir (escutar, compreender).<br />
Três verbos que devem ser conjugados na origem da confecção jornalística.<br />
Compartir e pensar seriam as etapas finais do ato presencial. O repórter não está sozinho na cena do acontecimento.<br />
Seja na cobertura do jogo de futebol ou na cobertura de guerra. Ele vê, ouve, conversa, entrevista,<br />
interage. E, finalmente, pensa sobre tudo o que presenciou. Pensa por si, como ser autônomo, como testemunha,<br />
como autor de narrativas, e pensa em como levar o leitor/ouvinte/espectador a pensar. Sem o pensamento,<br />
o ato seria presenciado por uma testemunha cega e muda.<br />
Correspondentes internacionais são o mais claro exemplo da singularidade do olhar de corpo presente. Em<br />
artigo que escrevi sobre o tema, tempos atrás (Adghirni, 2013a), já havia anotado que é pelas narrativas dos<br />
correspondentes que o singular aflora. O fato de Hannah Arendt ter comparecido ao julgamento de Adolf Eichmann,<br />
em Jerusalém, como repórter da revista New Yorker 72 , fez toda a diferença para narrar fatos de grande<br />
relevância para a humanidade (Arendt, 1999).<br />
As memórias de Joel Silveira, como correspondente de guerra junto aos soldados brasileiros na Itália, são<br />
outro exemplo fundamental para justificar nossa visão de que o olhar do correspondente é singular. Não<br />
apenas modifica o sentido da notícia como modifica o próprio jornalista. “Fiquei 20 anos mais velho”, disse<br />
Silveira, a Geneton Moraes, no documentário para a Globo News intitulado “Garrafas ao mar: a víbora manda<br />
lembranças”.<br />
O correspondente projeta expectativas, analisa, recua, envolve-se e distancia-se para construir seus relatos.<br />
Vejamos trechos de livros e de reportagens escritos por jornalistas em missão de cobertura no exterior. São<br />
temas e momentos diferentes, em diferentes lugares. Mas todos refletem a posição do correspondente a partir<br />
de um ângulo de visão singular da realidade.<br />
Comecemos pelas palavras de Cláudia Trevisan, quando correspondente de O Estado de S. Paulo na China,<br />
sobre suas expectativas em relação à ida àquele país:<br />
Quando embarquei em direção a Pequim no dia 19 de março de 2004 tinha uma ideia bastante vaga do que encontraria<br />
do outro lado do mundo depois de quase trinta horas de viagem, incluindo uma escala em Amsterdã.<br />
Sabia que estava me mudando para um país onde o superlativo parece dar a medida de todas as coisas: o mais<br />
populoso do mundo, o que cresce mais rapidamente e o que se transforma da maneira mais radical já vista em<br />
tempos recentes. Tinha bem delineado o contorno do país, em infindáveis estatísticas, mas não conseguia ver sua<br />
substância e muito menos como seria um dia depois do outro na China (Trevisan, 2006, p.15).<br />
72 A matéria foi publicada numa série de cinco reportagens, posteriormente condensadas no livro Eichmann em Jerusalém:<br />
um relato sobre a banalidade do mal.