O jogo da enunciação em sala de aula e a formação de sujeitos ...
O jogo da enunciação em sala de aula e a formação de sujeitos ...
O jogo da enunciação em sala de aula e a formação de sujeitos ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
5.3 A <strong>sala</strong> <strong>de</strong> <strong>aula</strong> como espaço <strong>de</strong> construção sócio-cultural do po<strong>de</strong>r<br />
argumentativo/inferencial <strong>da</strong> criança<br />
Começo a análise <strong>de</strong>sta seção pelo evento <strong>de</strong> fala <strong>da</strong> professora Salete na qual ela narra<br />
suas experiências escolares vivi<strong>da</strong>s na infância, seguido pelo evento <strong>de</strong> fala ocorrido na turma<br />
1303:<br />
Evento XIII<br />
O contato maior que a gente tinha era com o livro didático, aquela cartilha b<strong>em</strong> chata. Ah, Jesus! Eu me l<strong>em</strong>bro<br />
<strong>de</strong> uma cartilha. Acho que era... Sei lá como se chamava aquilo. Aí, tinha que ler aquilo soletrando. Ai, era um<br />
sofrimento para mim! Eu não sabia fazer pompom. Eu tinha que ficar ajoelha<strong>da</strong> no milho <strong>em</strong> cima <strong>da</strong> janela<br />
vira<strong>da</strong> para a rua pra todo mundo ver. A única que tinha na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Eu conto pros meus alunos e eles ficam<br />
assim: “Tia, mas você apanhou?” Eu apanhei, sim. Eu não sabia fazer contas. Era um terror, sabe? Aquilo não<br />
entrava, aquela tabua<strong>da</strong>... Dona Áurea, uma senhora branca, filha <strong>de</strong> al<strong>em</strong>ães, ficava com aquela régua pra lá e<br />
pra cá. Aquilo me <strong>da</strong>va um frio na barriga (risos). Quando a gente podia conseguir sair <strong>da</strong> <strong>sala</strong>, ia para o<br />
banheiro com medo <strong>da</strong> tabua<strong>da</strong>. “Hoje, vai ter sabatina <strong>de</strong> tabua<strong>da</strong>!”. Ai, aquilo era uma morte. E ela sabia<br />
que eu não conseguia <strong>de</strong>corar aquilo. Então, um dia olha o que eu fiz: Chegou uma colega na escola com um<br />
lápis <strong>de</strong> tabua<strong>da</strong>. Pensei: “Ah, é comigo mesmo!”. Peguei aquele lápis, to<strong>da</strong> feliz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, levei-o para casa.<br />
Falei: “hoje você vai acertar to<strong>da</strong>s as contas”. Ah, meu Deus, quanto sofrimento! Aquelas contas enormes! Aí,<br />
cheguei <strong>em</strong> casa, to<strong>da</strong> feliz com o meu lápis. Quando minha mãe chegou... ela revistava diariamente nosso<br />
material e <strong>de</strong>u <strong>de</strong> cara com esse lápis. E aí, ela me chamou. Quando minha mãe me chamava <strong>de</strong> Salete (risos), a<br />
situação ia ficar feia. Quando ela falou: “Salete!” Pegou naquela mochila o que eu tinha pegado na escola <strong>da</strong><br />
colega... Eu tinha pensado: “O quê? Eu não vou errar mais, nunca!” Menina, minha mãe já chegou com a<br />
palmatória na mão. Depois <strong>de</strong> muito interrogatório, saiu: “Peguei <strong>da</strong> minha colega” 10 palmatórias na mão! E<br />
aí, <strong>de</strong>z vezes... Com aquela mão incha<strong>da</strong>, chorando. Ela com aquele jeitão todo, muito provinciana, ru<strong>de</strong>, sabe?<br />
Autoritária. No outro dia, chegando à escola, a professora ain<strong>da</strong> não havia chegado. Professora naquela época<br />
tinha respeito na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Quando ela chegou, mamãe disse: “eu não quero que ela entregue o lápis na <strong>sala</strong>.<br />
Eu quero que ela vá <strong>de</strong>volver na casa <strong>da</strong> garota”. E assim foi feito. Vergonha <strong>em</strong> dobro. Da cartilha, eu tinha<br />
pavor. Aquele método... eu não sei se era silabação, se era soletração o que ela usava. Era um negócio que eu<br />
não entendia. Ah, meu Deus! Da alfabetização eu tenho pavor <strong>de</strong> l<strong>em</strong>brar, foi muito ruim, na<strong>da</strong> legal, gostoso.<br />
Não foi uma experiência legal, não gosto (Professora Salete <strong>em</strong> entrevista dia 08/07/2009).<br />
Evento XIV<br />
Quando a tia fala assim: “Eu vou <strong>da</strong>r visto nos ca<strong>de</strong>rnos!” A Mírian fala pra eu <strong>da</strong>r o meu ca<strong>de</strong>rno velho pra<br />
tia <strong>da</strong>r visto. Aí eu falo: “Não, Mírian, não vou fazer isso. Porque isso vai ser uma coisa muito erra<strong>da</strong>. Eu estou<br />
aqui pra te aju<strong>da</strong>r, não pra ficar te <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo <strong>da</strong>s coisas erra<strong>da</strong>s que você faz”. Aí, ela fala: “Ah, mas o meu<br />
ca<strong>de</strong>rno está todo com folha pula<strong>da</strong>, eu não posso mostrar! A tia vai brigar comigo!” Eu falo: “É melhor (a tia)<br />
brigar do que mentir. Eu falo com ela! Sabe, a tia passa, e a Mírian <strong>de</strong>ixa o ca<strong>de</strong>rno fechado e fala que vai ao<br />
banheiro. Só pra não per<strong>de</strong>r a Educação Física (Úrsula na Ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> conversa, dia 15/08/08).<br />
É possível encontrar s<strong>em</strong>elhanças e diferenças entre os dois acontecimentos. Por mais<br />
d<strong>em</strong>ocrático que parecia ser o espaço <strong>de</strong> <strong>sala</strong> <strong>de</strong> <strong>aula</strong> <strong>da</strong> turma 1303, ain<strong>da</strong> assim, o controle<br />
dos <strong>sujeitos</strong> e o controle sobre os discursos e os interdiscursos existiam. Se na experiência <strong>da</strong><br />
professora, o controle e a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> estavam nas mãos <strong>da</strong> mãe e <strong>da</strong> professora, na experiência<br />
<strong>da</strong> aluna Mirian, estavam com a professora e com a colega Úrsula.<br />
Uma <strong>sala</strong> <strong>de</strong> <strong>aula</strong> po<strong>de</strong> ser palco on<strong>de</strong> ocorram vários processos <strong>de</strong> aprendizag<strong>em</strong>,<br />
como a aquisição <strong>de</strong> informações, <strong>de</strong>duções, contra-argumentações, inferências. Po<strong>de</strong> se<br />
tornar um lugar i<strong>de</strong>al para o encontro entre os <strong>sujeitos</strong>-autores dialógicos e polifônicos, on<strong>de</strong><br />
135