O jogo da enunciação em sala de aula e a formação de sujeitos ...
O jogo da enunciação em sala de aula e a formação de sujeitos ...
O jogo da enunciação em sala de aula e a formação de sujeitos ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Evento XVI<br />
Marcela: Quando eu s<strong>em</strong>pre escrevo um texto... <strong>em</strong> casa ou aqui na escola, minha mãe s<strong>em</strong>pre corrige. Ou a tia.<br />
Mas s<strong>em</strong>pre eu escrevo frases, texto, poesia... E quando brinco <strong>de</strong> escolinha com meus amigos, eu passo <strong>de</strong>ver<br />
para eles ou eles passam <strong>de</strong>ver para mim. Só quando minha mãe chama pra gente ler, aí eu tento ensinar eles a<br />
ler... Minha irmã só t<strong>em</strong> três anos, ain<strong>da</strong> não precisa aju<strong>da</strong>r a ela a ler. Meus amigos têm 5 anos e aí eu preciso<br />
aju<strong>da</strong>r e ajudo ( Ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> conversa, 15/08/2008).<br />
A aluna Marcela, apadrinha<strong>da</strong> por mais <strong>de</strong> um aluno, apresentava uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>em</strong><br />
se expressar, gaguejando bastante. Sua presença <strong>em</strong> <strong>sala</strong> <strong>de</strong> <strong>aula</strong> não era <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque. Ao<br />
contrário, era bastante ofusca<strong>da</strong>, quase apaga<strong>da</strong> pela presença <strong>de</strong> outros. Porém, na ro<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />
conversa, <strong>em</strong>bora estivesse sendo filma<strong>da</strong>, revelou sua experiência <strong>de</strong> aprendizag<strong>em</strong> e como<br />
isso se refletia <strong>em</strong> sua rotina escolar e familiar. O que Marcela não conseguia ser <strong>em</strong> <strong>sala</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>aula</strong>, ela buscava <strong>em</strong> seu convívio com outras crianças no cotidiano familiar e social. Ela<br />
tentava agir <strong>da</strong> mesma forma que sua mãe, professora e padrinhos, estando junto <strong>de</strong> irmãos e<br />
vizinhos.<br />
Pareceu-me uma forma <strong>de</strong> compensar as experiências intraescolares, nas quais<br />
Marcela não conseguia ser protagonista, n<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolver sua autonomia ou manifestá-la <strong>em</strong><br />
<strong>sala</strong> <strong>de</strong> <strong>aula</strong>. Pod<strong>em</strong>os pensar sobre os processos <strong>de</strong> internalização <strong>da</strong> palavra do outro, <strong>em</strong><br />
que proporção o eu <strong>de</strong>senvolve autonomia perante as diversas formas com que o discurso do<br />
outro chega até ele e como se instala. A palavra do outro po<strong>de</strong> frear e congelar o pensamento,<br />
como diz Bakhtin (1992b). O autor fala sobre o peso <strong>da</strong>s palavras, começando por aquelas<br />
ditas pela mãe à criança pequena; <strong>de</strong>pois pelas palavras alheias e que ao final se tornam<br />
palavras alheias pessoais:<br />
139<br />
[...]. Na recor<strong>da</strong>ção que t<strong>em</strong>os habitualmente <strong>de</strong> nosso passado, esse outro é muito<br />
ativo e marca o tom dos valores <strong>em</strong> que se efetua a evocação <strong>de</strong> si mesmo (nas<br />
recor<strong>da</strong>ções <strong>da</strong> infância, é a mãe incorpora<strong>da</strong> a nós mesmos) (BAKHTIN, 1992b, p.<br />
167).<br />
Num outro trecho, Bakhtin esclarece mais um pouco:<br />
[...], mas a utilização <strong>da</strong> palavra na comunicação verbal ativa é s<strong>em</strong>pre marca<strong>da</strong> pela<br />
individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e pelo contexto. Po<strong>de</strong>-se colocar que a palavra existe para o locutor<br />
sob três aspectos: como palavra neutra <strong>da</strong> língua e que não pertence a ninguém;<br />
como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados<br />
alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que uso essa<br />
palavra numa <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> situação, com uma intenção discursiva, ela já se<br />
impregnou <strong>de</strong> minha expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> 85 .<br />
Pela vivência e pela experiência do/no cotidiano <strong>de</strong> uma exotopia madura (lugar<br />
exterior que me permite ver no outro e no seu contexto o que ele mesmo não vê) é que uma<br />
professora enxerga no cronotopo (t<strong>em</strong>po e lugar), no aqui e agora, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
85 Ibid., p. 313.