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TEmpi<br />

244 C. LEVI·STRAUSS<br />

dade das hortas e das mulheres. E como se urn contrato<br />

tivesse sido estabelecido entre os mortos e os vivos: em traea<br />

do culto razoiivel que Ihes e votado, os mortos permanecerao<br />

no sen IDundo e os encontros temporarios entre os dais grupos<br />

serao sempre dominados pelo cuidado dos interesses dos vivos.<br />

Urn tema folc16rico universal exprime bern essa f6rmula; e<br />

o do morto reconhecido. Urn her6i rico compra urn cadaver a<br />

credores que se opunham ao enterro. Ele dii ao morto uma<br />

sepultura. j,lgte aparece em sonho ao seu benfeitor e Ihe promete<br />

todo exito, com a condl!:Ro de as vantagens obtldas serem<br />

objeto de uma partllha equitatlva entre os dols. Com<br />

efeito, 0 her6i logo obtem 0 arnor de uma princesa, que consegue<br />

salvar de numerosos perigos, com 0 auxilio do sen protetor<br />

sobrenatural. Seria preciso dividi-Ia com 0 morto? Mas<br />

a princesa e encantada: meio-mulher, meio-dragao ou serpente.<br />

o morto reivindica sen direito, 0 her6i se resigna e 0 morto,<br />

satlsfeito com essa lealdade, se contenta com a por!:Ro maligna,<br />

que destaca, entregando ao her6i uma espOsa humanizada.<br />

A essa conceP!:Ro se opiie outra, 19ualmente ilustrada por<br />

urn terna folel6rieo que chamarei: 0 cavalheiro empreendedor.<br />

o her6i e pobre, em lugar de ser rico. Como unieo bern,<br />

possui um grao de trigo, que eonsegue, a eusta de astucia,<br />

trocar por um galo, depois por um porco, depois por um boi,<br />

depois por urn. cadaver, 0 qual, enfim, troca por uma princesa<br />

viva. Ve-se que aqui 0 morto e objeto, e nao mais sujeito.<br />

Em lugar de um s6cio com quem se trata, e urn instrumento<br />

que se emprega numa especula~ao em que a menlira<br />

e a fraude tern 0 seu lugar. Algumas socledades obseryam<br />

com rela~3.o aoo seus mortos uma atitude desse tipo.<br />

Recusam-Ihes 0 repouso, mobilizam-nos: literalmente por vezes,<br />

como e 0 caso do canlbalismo e da necrofagla, quando fundados<br />

na ambi~3.o de incorporar a si as virtudes e os poderes<br />

do defunto; slmhOllcamente tamMm, nas socledades comprometidas<br />

em rivalidades de prestfgio, nas quais os participantes<br />

devem, por assim dizer, chamar constantemente os mortos<br />

em seu socorro, procurando justificar suas prerrogativas por<br />

meio de evoca{;oes de antepassados e de embustes geneal6gicos.<br />

Mais que as outras, essas sociedades Se sentem perturbadas<br />

pelos mortos, de que abusam. Elas pensam que estes ultimos<br />

lhes dao 0 tr6co de sua persegui~ao: tanto mais exigentes e<br />

reivindicativos com rela{;iio aos vivos quanto estes procuram<br />

aproveitar-se dmes. Mas, quer se trate de partllha equitatlva,<br />

TBISTES TB6PIOOS 245<br />

como no primeiro caso, ou de especula{;3.o desenfreada, como<br />

DO segundo, a ideia dominante e que, nas rela{;6es entre mortos<br />

e vivos, nao se poderii evltar a partiZha.<br />

Entre essas posl~es extremas, hii condutas de transi~ao:<br />

os indios da costa oeste do Canadii e os melaneslos fazem<br />

comparecer todos os sens ancestrais nas cerim6nias, obrigando-os<br />

a testemunhar em favor dos seus descendentes; em certos<br />

cultos de antepassados, na China ou Da Africa, os mortos conservam<br />

a sua identidade pessoal, mas somente durante algumas<br />

gera~oes; entre os Pueblo do sudoeste dos Estados Unidos,<br />

cessam imediatamente de ser personalizados como defuntos,<br />

mas conservam urn certo mlmero de fun{;5es especializadas.<br />

Mesmo na Europa, onde os mortos se tornaram apAticos e<br />

an6nimos, 0 folclore Conserva vestfgios da outra eventualidade,<br />

com a cren~a de que existem dois tipos de mortos: os<br />

que sucumbiram a causas naturais e que fornecem urn corpo<br />

de antepassados protetores; enquanto os suicidas, os assassinados<br />

ou enfeitil;:ados se transformamem espfritos malfeitores<br />

e invejosos.<br />

Se nos limitarmos a considerar a evoluf:3.o da civiliza{;3.o<br />

ocidental, nao hii duvida de que a atltude especuladora desapareceu<br />

progressivamente em favor da conce~o contratual<br />

das reIa{;6es entre mortos e vivos, esta ultima dando Iugar<br />

a uma indiferen~a anunciada talvez pela f6rmula dos Evangelhos:<br />

deixai os mortos enterrar os sens mortos. Mas nao<br />

ha nenhuma razao para supor que essa evolu~o corresponda<br />

a urn modelo universal. Antes, parece que tMas as culluras<br />

tenham tido obscuramente consci~ncia das duas f6rmulas,<br />

pondo ° acento numa delas sem deixar de procurar, por condutas<br />

sUPE;rsticiosas, garantir-se do outro lado (como, de resto,<br />

n6s pr6prlOS contlnuamos a fazer, a despelto das cren~as ou<br />

da incredulldade confessadas). A orlginalWade dos Bororo<br />

:: dos outros povos que ja dtei como exemplo, provem de qU~<br />

eles formularam cIaramente as duas possibilidades e construfram<br />

urn sistema de cren{;RS e de ritos corres~ndente a<br />

cada uma delas; por fim, mecanismos que permitem passar<br />

d.e uma para outra, com a esperan{;a de conciliar as duas.<br />

_ Eu me exprimiria de maneira imperfeita se dissesse que<br />

nao hA para os Bororo morte natural: um hornem nao e para<br />

~les urn individuo, mas uma pessoa. Faz parte de urn universo<br />

sociol6gico: a aldeia, que existe eternamente, lado a lado com<br />

o universo fisico, tambem composto de outros s~res animados:<br />

corpos celestes e fenomenos meteorol6gicos. Isso, a despeito<br />

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