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72<br />
O. LEVI-STRAUSS<br />
TBISTES TR6PICOS 73<br />
lado, reencontra a sua forma visfvel ao mesillo tempo em que<br />
se desfaz a sua natureza sonora.<br />
T&da a vida havia abandonado 0 mar. Ja nao se via, uR<br />
prea do navio, s6lida e melhor ,ritmada que 0 assalto da :8<br />
puma contra 0 casco, a negra ressaca dos bandos de delfllls<br />
adiantando-se graciosamente it fnga branca das vagas. 0<br />
jacto de urn cetaceo ja DaD mais cortava 0 horizonte; daqui<br />
por diante, em nenhum momento era 0 mar intensamente azul<br />
povoado pela flotilha de delicados vens membranosoS, malvas<br />
e r6seos, dos nautilos.<br />
Do Dutro lado do fOsso, encontrar-se-iam hi para nos aeolher,<br />
todos esses prodigios verificados pelos navegadores dos<br />
aotigos seculos? Percorrendo espa~os virgens, eles se mostravarn<br />
menDS interessados em descobrir urn novo illUMO do que<br />
em verifiear 0 passado do antigo. Adao, Ulisses lhes eram<br />
confirmados. Quando abordou as 'costas das Antilhas, na sua<br />
primeira viagem,. Colombo acreditava ter atingido talvez 0<br />
.Japao, mas, ainda mais, 0 Paraiso Terrestre. Nao serao o:s<br />
quatrocentos anos decorridos desde entao que poderao anlquilar<br />
essa grande diferen~a gra~as a qual, durante dez o~<br />
vinte milenios. 0 Novo Mundo permaneceu a margem das aglta!:Oes<br />
da hist6ria. Sempre subsiste alguma co~sa, num pla~o<br />
diferente. Eu aprenderia logo que, se a Amenca do SuI !laO<br />
era mais urn Eden antes da Queda, ela devia ainda a esse<br />
misterio 0 ter permanecido numa idade de ouro, pelo menos<br />
para os que possuiam dinheiro. Seu privilegio estava se derretendo<br />
como neve ao sol. Que resta d~le em nooSOS dias?<br />
Reduzida a uma preciooa ~a, ao meSillO tempo em que,<br />
daqui por diante, sbmente poderao ai acceder os privilegiadoo,<br />
ela se transformon em sua natureza, de eterna se tornando<br />
hist6rica, e de metafisica, social. 0 paraiso dos homen~, tall<br />
como Colombo 0 entrevira, prolongava-se e se estragava ~lmuItaneamente<br />
oa d~ura de viver reservada apenas aos flCOS.<br />
o cell fnliginoso do "Caldeirao", sua atmosfera pesada, nao<br />
constituem apenas 0 sinal manifesto da linha equatorial. ltles<br />
resumem 0 cUma sob a qual dais mundos se afrontaram.<br />
::f.:sse taciturno elemento que os separa, essa bonan.;:a em que<br />
as for.;:as maleficas parecem sbmente abrigar-se, sao a ulti~a<br />
barreira mistica entre 0 que constituia, ainda ontem, dOlS<br />
planHas opostos por condi.;:Oes tao diferentes que os primeiroS<br />
testemunhos nao puderam acreditar fossem igualmente hu~<br />
manos. Urn continente apenas tocado pelo hornern, oferecia-se<br />
a homens cuja avidez ja nao se poderia contentar com 0 seu.<br />
)<br />
1<br />
Tudo ia ser comprometido por esse segundo pecado: Deus, a<br />
moral, as leis. Tudo seria, de forma ao mesrno tempo sirnultanea<br />
e contradit6ria, verificado, de fato, e em direito, revogado.<br />
Verificados, 0 Eden, a Blblia, a Idade de Ouro dos<br />
antigos, a Fonte da Juventude, a Atlantida, as Hesperides, as<br />
pastorais e as IIhas Afortunadas; mas tamMm entregues it<br />
duvida, pelo espetaculo de uma humanidade mais pura e mais<br />
feliz (que, certarnente, nao 0 era verdadeiramente, masque<br />
um secreta remorso ja fazia acreditar tal), a revela~ao, a<br />
salva~ao, os costumes e 0 direito. Jamais a humanidade<br />
conhecera uma prova tao lancinante, e jamais conhecera outra<br />
semelhante, a menos que urn dia, a milhoes de quilometros do<br />
nosso, outro globo se revele, habitado por sikes pensantes. E n6s<br />
ainda sabemos que essas distancias sao teoricamente transponiveis,<br />
enquanto os primeiros navegadores temiam afrontar<br />
o nada.<br />
Para medir 0 car.Her absoluto, total, intransigente dos<br />
dilemas nos quais a humanidade do seculo XVI se senUa<br />
presa, e necessario lembrar alguns incidentes. A essa Hispaniola<br />
(hoje Haiti e Sao Domingos), onde os indigenas, em<br />
mlmero de 100.000 mais ou menos, em 1492, eram sbmente<br />
uns :00 urn se:~l? .m~is tarde, .morrendo de horror e de repug- \<br />
n§.ncla pela clvlhza~o europela, mais do que pela variola e<br />
os mans tratos, os colonizadores enviavam comissao s6bre<br />
comissao a fim de determinar a sua natureza. Se eram verdadeiramente<br />
homens, poder-se-iam ver neles os descendentes<br />
das dez tribos perdidas de Israel? Mong6is chegados sobre<br />
elefantes? Ou escoceses trazidos ha soculos pelo principe<br />
Modoc? Permaneciam pagaos de origem ou eram antigos<br />
cat6licos batizados por Sao Tomas e relapsos? Nem se tinha<br />
muita certeza de que f6ssem homens e nao criaturas diab6<br />
licas ou animais. Tal era a opiniao do rei Fernando, ja que<br />
em 1512 importava escravos brancos nas Indias Ocidentais, com<br />
o unico fim de impedir os espanh6is de esposar indigenas "que<br />
e.stao longe de ser criaturas racionais". Diante dos esfor~os<br />
de Las Casas para suprimir 0 trabalho for~ado, os colonos se<br />
mostravam menos indignados que incredulos: "Entao, exclamavam,<br />
nao nos podemos servir nem mesmo de animais de<br />
carga?"<br />
De tOdas essas comissoes, a mais justamente celebre, a<br />
dos monges da ordem de Sao Jeronimo, comove aD mesmo<br />
tempo por urn escrupulo que as empreendimentos coloniais esqueceram<br />
completamente desde 1517, e pela luz que lan~a sobre<br />
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