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Contrariado, o Prof. Clarimundo levanta-se para atender<br />
ao chamado.<br />
— Quem é?<br />
Uma voz familiar:<br />
— Sou eu. Vim trazer o leite.<br />
Abre a porta.<br />
A viúva Mendonça, rechonchuda e sorridente, tem na<br />
mão uma bandeja com um copo de leite e um pedaço de bolo.<br />
— Ora... Não precisava ter esse incômodo...<br />
— Incômodo nenhum, professor.<br />
Ele toma da bandeja e fica parado, indeciso. Enquadrado<br />
pela porta, o vulto da viúva quase se dissolve na escuridão do<br />
fundo.<br />
— Bem... — faz ela.<br />
— Pois eu lhe fico muito grato.<br />
Silêncio. Embaraço. A viúva quer entrar num assunto:<br />
— Pois o senhor não há de ver?<br />
Os olhos do professor exprimem surpresa. Que quererá<br />
esta mulher, bom Deus?<br />
A viúva torna a falar:<br />
— A gente sempre tem uma coisa na vida pra se<br />
incomodar...<br />
O mote foi dado. Agora, naturalmente, o professor<br />
pergunta: Que foi que aconteceu? E então ela desembucha a<br />
história toda.<br />
Mas o silêncio continua. O professor espera, com a<br />
bandeja na mão. O copo treme, o leite transborda.<br />
— Pois professor, o senhor acredita que essa gente aí<br />
debaixo ainda não me pagaram?<br />
O professor apenas acredita em que a concordância de<br />
gente com pagaram é um atentado terrível à integridade<br />
física e moral da gramática. O resto não interessa...<br />
A viúva Mendonça está agora disposta a contar tudo:<br />
— A gente do João Benévolo... Três meses atrasados no<br />
aluguel. Ele, o água-morna, está desempregado. Ela costura<br />
mas não tira nada. Nem dá pra comer. Às vezes fico com pena<br />
e dou alguma coisa. Não! — A viúva se inflama de entusiasmo<br />
indignado. — Mas isto não pode durar! Preciso botar eles pra<br />
rua. Sou pobre, vivo do meu trabalho honesto e não posso ser<br />
assim explorada...<br />
O leite escorre pelas bordas do copo, empapando o bolo.<br />
Os olhos do professor estão fixos na cara da interlocutora,<br />
mas realmente estão vendo num quadro-negro imaginário o<br />
desenvolvimento de um teorema.<br />
Agora a voz da dona da casa é um sussurro confidencial:<br />
— Vem todas as noites visitar ela um sujeito alto malencarado.<br />
Dizem que foi namorado dela. Isso não está me<br />
cheirando bem. Ele está arrumado na vida, diz que dá dinheiro<br />
a juros. Aí tem dente de coelho. Eu sei que o João Benévolo<br />
não gosta da coisa... O sujeito vem todas as noites. O senhor<br />
imagina, professor, ainda por cima esse negócio...