24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

terça-feira<br />

— Que dia brabo! — exclama Fiorello para Clarimundo,<br />

que passa sob o aguaceiro, de guarda-chuva aberto.<br />

O professor faz alto.<br />

— Neste século, seu Fiorello, até o tempo anda maluco.<br />

Ontem, céu limpo. Hoje, esta chuva...<br />

— Não quer entrar?<br />

— Não, obrigado. São quase oito. Tenho de ir para o<br />

colégio. Até logo.<br />

— Até logo, professore.<br />

Clarimundo retoma a marcha. A chuva cai forte<br />

desenhando nas pedras da calçada uma esquisita flora de<br />

respingos. Uma criança sai correndo do vão duma porta, com<br />

um barquinho de papel na mão, agacha-se na sarjeta, larga o<br />

barco na correnteza e volta para casa correndo. Encolhido<br />

mas indiferente à chuva, Clarimundo continua a caminhar.<br />

O que convém frisar é o absurdo do infinito pessoal na<br />

nossa língua. Pois ora muito bem! O francês tem infinito<br />

pessoal? Não. O inglês tem? Também não. No entanto o<br />

infinito pessoal existe, é preciso acatá-lo, empregá-lo com<br />

correção. Pois ora muito bem!<br />

Clarimundo vai compondo mentalmente a sua lição.<br />

No rio encapelado da sarjeta navegam cascas de laranja,<br />

gravetos, folhas secas, pedaços de papel...<br />

Como seu guarda-chuva está furado, o professor sente no<br />

rosto os respingos frios. Não tem, entretanto, consciência do<br />

que está acontecendo. Está de guarda-chuva, logo é impossível<br />

que a chuva lhe esteja batendo no rosto.<br />

Com o seu passo miúdo ele caminha sempre. Na esquina,<br />

pára junto do poste e fica à espera do bonde.<br />

Os trilhos se espicham rua afora, a água escorre-lhes<br />

pelos sulcos. Um bonde se aproxima. Clarimundo dá dois passos<br />

e ergue a mão esquerda. Com um ranger de freios o elétrico<br />

estaca.<br />

Durante alguns minutos Clarimundo luta para fechar o<br />

guarda-chuva mas a mola não obedece. Desesperado, rosto em<br />

fogo, o professor sobe para a plataforma, ficando com a copa<br />

do guarda-chuva para fora. O bonde põe-se em movimento.<br />

Clarimundo, que tem ambas as mãos ocupadas com o maldito<br />

guarda-chuva, perde o equilíbrio e vai de encontro ao<br />

motorneiro, que o ampara.<br />

— Desculpe — diz o homem de Sírio, embaraçado. — Esta<br />

coisa emperrou.<br />

E, segurando o balaústre com uma das mãos, faz<br />

movimentos incríveis com a outra, procurando fechar o<br />

guarda-chuva.<br />

Depois de alguns segundos de luta, consegue fazer<br />

55

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!