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João Benévolo tem a impressão de que já não é mais<br />
deste mundo, já não tem mais corpo. Agora até a dor do<br />
estômago desapareceu. Se de repente ele saísse voando por<br />
cima dágua como os biguás, não era de admirar. Fez a última<br />
refeição na tarde de ontem: mais de vinte horas sem comer.<br />
E de súbito — olhando para uma lancha que passa no<br />
meio do rio a toda velocidade — João Benévolo pensa em<br />
fugir. A idéia lhe brinca no espírito por alguns segundos.<br />
Fugir... Não ser mais João Benévolo, não ouvir mais chamaremlhe<br />
Janjoca com voz chorona, não ser mais pai dum filho<br />
tristonho, um pobre-diabo... Fugir... Outras terras, outras<br />
gentes, outra vida, vida de herói. Fugir... João Benévolo<br />
imagina o que pode, será uma nova personalidade. O<br />
esquecimento completo de tudo que ficou para trás, de tudo<br />
que é triste, pobre, feio, sujo...<br />
Mas a fuga dura apenas um minuto. A lancha já vai longe,<br />
quase diluída contra o fundo escuro das ilhas.<br />
Com que cara eu vou chegar em casa?<br />
João Benévolo pensa até mesmo na possibilidade de não<br />
voltar mais. Ele já está sentindo mesmo a sensação de que é<br />
um fugitivo, um desertor. Se ficar na rua, no outro dia os<br />
jornais falarão no desaparecimento, dando os sinais: baixo,<br />
magro, encolhido, cara de menino medroso, mal vestido, barba<br />
de dois dias... É assim que a notícia do jornal vai dizer. Mas<br />
não é assim que ele se vê, não é assim que ele realmente é.<br />
Não!<br />
O estômago lhe dói de novo. O dia é belo mas ele está<br />
com fome. Os veleiros vogam no rio mas a sua cabeça está<br />
oca.<br />
João Benévolo volta para a cidade.<br />
Nem pensar vale a pena, não adianta, o melhor é<br />
entregar-se. Há de acontecer alguma coisa de bom. Assim de<br />
repente, como nos livros...<br />
Sai assobiando baixinho, tremido, o Carnaval de Veneza.<br />
E para se distrair brinca de pisar na própria sombra.<br />
Enquanto a água na banheira escorre, Armênio lê As<br />
Memórias de Casanova. De quando em quando a imagem de<br />
Vera se mistura com as letras do livro e ele não compreende o<br />
que lê.<br />
Diabinha! A mesma esfinge de yeux verts, durante todo o<br />
almoço, indiferente e distante. De nada valeram as frases que<br />
ele preparou. Tudo perdido. Monsenhor Gross comia e bebia,<br />
rindo. D. Dodó era um anjo de solicitude e delicadeza. Leitão<br />
Leiria, teso e discreto como um gentleman. Os outros dois<br />
convidados, simplesmente ignorados, apagados, inexistentes.<br />
Sim, o peru estava delicioso, mas Vera não lhe dera o menor<br />
sorriso.<br />
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