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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Caminhando agora dum lado para outro, Teotônio Leitão<br />

Leiria simplesmente não compreende como é que um homem,<br />

só por causa do barulho das máquinas de escrever, fica a<br />

recordar coisas passadas, tolas, sem a menor importância...<br />

Vai até a janela e olha para baixo. A rua fervilha no<br />

vaivém dos transeuntes: um mar encapelado de cabeças<br />

multicores. Uma onda quente de sons sobe para as nuvens. O<br />

sol já se escondeu por trás dos edifícios mais altos. Seis horas.<br />

Teotônio tira do bolso interno do paletó (que coincidência,<br />

bem de cima do coração) a carteira, e de dentro da carteira<br />

um papelucho amarfanhado com um endereço escrito a lápis.<br />

Como um colegial que lê às escondidas o primeiro bilhete da<br />

namorada, olha, nervoso, para o papelucho procurando gravar<br />

o endereço na memória. Travessa das Acácias, 143. Repete<br />

baixinho o nome da rua e o número da casa. Depois rasga o<br />

papel em pedaços miúdos e joga-os no cesto.<br />

Uma dúvida terrível o assalta. Será uma casa discreta? A<br />

Travessa ele conhece, sabe onde fica, já passou até por lá. ..<br />

Mas se aparecerem caras conhecidas às janelas?<br />

Teotônio imagina desculpas.<br />

— Boa tarde, Sr. Leitão Leiria, então, aqui pela nossa<br />

zona?<br />

Ele fará o seu sorriso mais indiferente e com um gesto<br />

vago responderá:<br />

— Flanando um pouco. Estou pensando em comprar uma<br />

casa aqui na sua rua...<br />

Teotônio senta-se à mesa, pega da caneta e começa a<br />

rabiscar nervosamente no papel. Escreve nomes à toa —<br />

precípuo, flósculo (palavra bonita que ele não conhecia e<br />

aprendeu ontem, folheando por acaso o Cândido de Figueiredo)<br />

— e ao mesmo tempo fica a refletir.<br />

Bom. A Dodó aparece, vem no Chrysler, diz duas palavras,<br />

segue para casa e manda o carro de volta. Ah! Mas ele não vai<br />

entrar na Travessa com o Imperial. O carro pode chamar a<br />

atenção. Seria o mesmo que ser levado num andor, com<br />

trombetas e fanfarras, como o Radamés no segundo ato da<br />

Aida. Não. Numa esquina, ele disfarça. — Jacinto, vá dar umas<br />

voltas, quero fazer um pouco de exercício. Me espere daqui a<br />

três quartos de hora ali na pracinha... — E entra na<br />

Travessa a pé. 143. Será no primeiro andar?<br />

Teotônio se ergue, desinquieto. Pensa em Dodó e na sua<br />

cara de anjo bom e sente-se miserável, pecador, indigno. (Não<br />

muito, muito...) Mas que é que vai fazer? A culpa não é sua.<br />

Enfim, Dodó está com cinqüenta anos, não é nenhuma menina...<br />

Um homem, mesmo aos cinqüenta e dois, está no cerne, é<br />

diferente. Deus, na sua infinita sabedoria...<br />

A porta se abre. D. Branca aparece, num relampejar de<br />

óculos. Sobressalto.<br />

— D. Branca, já lhe disse, nunca entre sem bater.<br />

Branquinha baixa os olhos, desconcertada.<br />

— Desculpe. A sua senhora está lá embaixo na loja.

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