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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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partido se eleva como um Pão de Açúcar inabalável por cima<br />

desta tormenta desencadeada... de... de.. .<br />

Debate-se numa ânsia feroz em busca do termo<br />

apropriado. O Dr. Armênio sorri, compreendendo. A sua<br />

benevolência para com o provável futuro sogro é tão grande,<br />

que ele o socorre com um aceno de cabeça e um olhar de<br />

compreensão. Sim, não precisa procurar o termo porque ele<br />

sabe muito bem o que o seu ilustre e digno amigo quer dizer.<br />

Como a palavra precisa não lhe ocorre, Leitão Leiria dá<br />

um chupão violento no charuto e volta ao estribilho:<br />

— Que indignidade! Que indecência!<br />

Honorato Madeira faz um esforço épico para não fechar<br />

os olhos, para não se entregar ao sono. Mas será que a Gigina<br />

não quer ir embora ainda? Diabo! A sorte é que amanhã é<br />

domingo. . .<br />

— O nosso partido representa a estabilidade. A oposição<br />

é a ambição desenfreada.<br />

A fumaça do charuto sobe num espiral. O jazz rompe a<br />

tocar um samba carioca.<br />

Armênio pensa no verso que anotou:<br />

“Ses yeux froids, où l’émail serti de bleu de Prusse, Ont<br />

l’éclat insolent et dur du diamant.”<br />

Verlaine. Que grande poeta! E como os versos se<br />

adaptam ao caso... Armênio pensa nos olhos de Vera. Têm o<br />

brilho insolente e duro do diamante...<br />

Os pares rodopiam à música reboleante do samba. O<br />

pistão faz um floreio agudíssimo e Honorato Madeira desperta.<br />

— Porque precisamos opor um dique a essa onda<br />

sangrenta do comunismo...<br />

Leitão Leiria alimenta a secreta esperança de ser eleito<br />

deputado pelo partido da situação, ajudado pelo clero.<br />

Os músicos tocam freneticamente, o suor a escorrer-lhes<br />

pelo rosto. (Um senhor magro de colarinho duro e alto<br />

comenta com um vizinho: “Que inverno esquisito este, nosso<br />

amigo, parece o forte de janeiro...”) O espírito moleque e<br />

despreocupado da gente da Favela se encarna por alguns<br />

minutos nos corpos dos bailarinos. O samba é repinicado,<br />

molengo, sinuoso, sensual, gaiato. Num dado momento abrandase<br />

a fúria dos músicos e um mulatinho risonho, de cabelo<br />

frisado e lambuzado de brilhantina, avança pernóstico para a<br />

ponta do estrado e começa a cantar:<br />

O samba desceu do morro,<br />

prendeu fogo na cidade,<br />

ôi!<br />

O mar agora fervilha, numa crispação desordenada, como<br />

que animado por um sopro de fogo.<br />

A voz do mulato é safada. A cara do mulato está pálida

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