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paraíso tranqüilo que a velha preta lhe tornava possível<br />
graças à sua vigilância de Anjo da Guarda, a mãe remota, os<br />
serões familiares, a cara feia mas querida da negra velha... O<br />
colégio, nenhuma relação com o outros rapazes, a vida do<br />
menino mimado que veste roupas limpas, que vai à escola<br />
penteadinho e cheirando a água-de-colônia... Quando os colegas<br />
o ameaçavam, era ainda tia Angélica que vinha salvá-lo.<br />
“Saem, diabos! Deixem o menino quieto!” E brandia a mão<br />
enorme, como uma clava, afastando os agressores. Depois, a<br />
morte da negra, o cadáver, o velório, o sentimento duma perda<br />
irreparável. A morte da mãe não lhe teria sido pior. Mais<br />
tarde, a Academia, o primeiro contato com a vida, e a grande<br />
decepção. A vida não era, como ele esperava, um<br />
prolongamento dos contos de fadas. Nas histórias de tia<br />
Angélica sempre o príncipe acabava casando com a princesa e<br />
o gigante mau morria. Mas na vida os gigantes maus andavam<br />
soltos, vitoriosos, e não havia princesas nem fadas.<br />
Noel tem às vezes a impressão de que através da<br />
autobiografia ele talvez se possa libertar de seus fantasmas.<br />
Mas todas as tentativas que tem feito redundaram em<br />
malogro.<br />
O que vai para o papel é uma história sem força, sem<br />
carne, sem sangue, é como que um conto de fadas de outro<br />
conto de fadas, uma mentira de outra mentira.<br />
Fernanda sorri e olha para o amigo.<br />
— Eu te ofereço um assunto, e esse assunto será o teu<br />
primeiro passo na direção da vida...<br />
— Qual é?<br />
— Toma o caso de João Benévolo. Tem mulher e filho e<br />
está desempregado. Eis uma história bem humana. Podes<br />
conseguir com ela efeitos admiráveis.<br />
Noel faz uma careta de desgosto: a mesma careta que<br />
fazia em menino quando tia Angélica lhe queria botar goela<br />
abaixo, à custa de promessas falsas, um remédio ruim.<br />
— Mas isso é horrível... Não me sinto com capacidade<br />
para tirar efeitos artísticos dessa história.<br />
Fernanda responde rápida:<br />
— Tira efeitos humanos. É mais legítimo, mais honesto.<br />
Para Noel a história do homem que perdeu o emprego só<br />
tem uma face: a da chatice descolorida e baça do cotidiano.<br />
Criaturas sem imaginação, banhos aos sábados, ambientes de<br />
janelas fechadas, cheiros desagradáveis, conversas tolas, um<br />
sofrimento que não é desesperado nem suave, mas<br />
simplesmente aborrecível. Que esperança poderá haver para<br />
um romance baseado em tal história?<br />
— Por exemplo — insiste Fernanda — um dia falta a<br />
comida... Podes começar a história nesse ponto. O herói olha<br />
para a mulher e pergunta: O que é que vamos comer?<br />
Comer... A palavra causa uma espécie de náusea a Noel.<br />
Comer... Ele preferia um romance de belas abstrações<br />
luminosas, de seres transparentes que não têm sangue nas