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então duplicado. Noel entrou para a Academia. Os anos<br />
passaram. Honorato teve febre tifóide, ficou muito mal,<br />
emagreceu, sarou, tornou a engordar ainda mais do que antes.<br />
Noel se formou. Durante todos esses anos fizeram-se novas<br />
amizades, o casal foi duas vezes ao Rio de Janeiro, comprou<br />
um Ford que mais tarde foi trocado por um Packard e agora<br />
Virgínia está na frente do espelho, embaraçada e tonta,<br />
porque não pode compreender o mistério... A imagem que o<br />
vidro lhe mostra diz que se passaram muitos anos, que ela não<br />
é mais jovem, que seus seios estão caídos, que sua pele é<br />
flácida, os cabelos quase grisalhos... Mas se ela fecha os olhos,<br />
é como se conseguisse abolir todo o passado, fazer retroceder<br />
o tempo, pois interiormente continua a ser a mesma de<br />
antigamente. Nem chegou a ficar adulta. O mesmo gosto pelas<br />
festas, pelos vestidos, pela vida em sociedade, pelas novas<br />
relações. É como se não tivesse acontecido nada, como se o<br />
tempo houvesse parado bem naquele dia em que, vestida de<br />
branco, ela marchou, pelo braço de Honorato, rumo do altar,<br />
na Igreja das Dores... Vinte e quatro anos! Era como se fosse<br />
apenas vinte e quatro dias. Houve períodos de sua vida que<br />
foram como que um vácuo, sem cor, sem sabor, sem sentidos.<br />
Em outros houve tempestades, apreensões... mas ela viveu de<br />
verdade. O caso do Cap. Brutus, por exemplo (Virgínia<br />
recorda). Encontrou-o na casa dos Marques Pinto, numa festa<br />
de aniversário. Foram apresentados. Ele era alto, envergava<br />
um uniforme bem talhado, falava com uma voz poderosa,<br />
soltava as palavras como tiros de canhão (“voz de cavalo” —<br />
classificara ela). Dançaram. Virgínia estava levemente<br />
escandalizada. Não era hábito uma senhora casada dançar com<br />
um homem solteiro. O capitão era atrevido no olhar e no falar.<br />
Fez-lhe elogios. Tinha um jeito carioca de pronunciar as<br />
palavras, chiava nos ss. Contava coisas diferentes. Era, em<br />
suma, uma novidade. Conversaram muito. Ao voltar para casa,<br />
Virgínia levou a impressão de ter vivido um sonho impossível.<br />
Mas Honorato ia a seu lado no automóvel, cabeça caída para<br />
trás, morto de sono, resmungando que tinha de acordar cedo<br />
no outro dia para ir ao escritório. Mas ela não lhe dava<br />
atenção. Escutava mentalmente a voz do capitão, os ss<br />
chiados, recordava o perfume dele, os galanteios. Nos outros<br />
dias Brutus começou a passar pela frente da casa. Tinha um<br />
modo elegante de fazer continência quando ela aparecia à<br />
janela. Ficou o hábito. Todas as tardes às cinco... Ele descia do<br />
bonde e vinha postar-se à esquina. Virgínia entreabria a janela.<br />
Em casa ninguém percebeu. Ninguém? Só tia Angélica. Viu e<br />
compreendeu tudo, o demônio da negra! Um dia falou, sem<br />
rodeios.<br />
— Acabe com isso. Se o Norato souber, morre de<br />
desgosto.<br />
A cara da negra, lustrosa e intumescida, a boca<br />
desdentada, os olhos de esclerótica amarela, a íris diluída... E<br />
aquela voz odiosa, áspera e antipática.