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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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coroadas de bolhas irisadas. A água agora vai tomando uma<br />

cor leitosa, palidamente azulada.<br />

Isto parece um sonho comparado com aquela vida... O<br />

colégio da Prof. a Ana Augusta. Os bilhetinhos de amor do<br />

farmacêutico. As meninas do seu Boeira, coletor estadual. De<br />

noite, o cinema do seu Mirandolino, o Britinho da Barbearia<br />

Fígaro soprando na flauta, o filho do delegado batendo no<br />

piano. Foi naquele cinema sombrio e feio que ela começou a<br />

amar os artistas de Hollyw ood...<br />

Tinha dez anos quando Valentino morreu. Mesmo assim<br />

pôde sentir a perda irreparável. Chorou muito e o pai teve de<br />

dar-lhe uma boneca nova para a consolar. Depois os anos<br />

passaram, ela cresceu, o cinema progrediu, ganhou voz. Mas<br />

em Jacarecanga, continuava mudo. (“Não sou besta de<br />

comprar um aparelho falante” — dizia o Mirandolino — “essa<br />

geringonça não vai longe...”) E assim o barbeiro e o filho do<br />

delegado continuaram a arranhar na flauta e no piano valsas<br />

impossíveis.<br />

Chinita teve muitos namorados, recebeu muitos<br />

bilhetinhos perfumados com flores secas. Uma vez, como os<br />

pais se opusessem ao seu namoro com um forasteiro, que toda<br />

gente apontava como vigarista, Chinita pensou em fugir. (Não<br />

que o amasse de verdade. O que a tentava na causa era o que<br />

ela tinha de cinematográfica. Adorava as situações<br />

românticas. Elas faziam que a vidinha sem graça de<br />

Jacarecanga se parecesse, pelo menos um tiquinho assim, com<br />

a das figuras de Hollyw ood.) Mas o Cap. Moreira, delegado de<br />

polícia, não ia nunca ao cinema e não compreendia os<br />

romances. Recebeu uma denúncia, obteve provas e trancafiou<br />

o galã de Chinita no xadrez.<br />

Chinita passou vários dias vestida de escuro, olhos<br />

pisados (bem como Pola Negri numa fita trágica), pensando no<br />

bem-amado. Mas os cartazes do Cinema Ideal saíram pára a<br />

rua anunciando uma “superprodução” de Ramon Novarro.<br />

Chinita criou alma nova e esqueceu o seu drama. Foi ao<br />

cinema e naquela mesma noite arranjou outro namorado.<br />

A vida em Jacarecanga rolava, sempre igual. Chinita<br />

vivia com o pensamento em Hollyw ood. Imaginava-se Greta<br />

Garbo, Joan Craw ford, ou Constance Bennet. Imitava gestos e<br />

penteados. (Nos bailes do Recreio todos riam dela. Pura<br />

inveja!)<br />

O ambiente familiar não a encorajava. As paredes da<br />

casa, cheias de retratos de avós, gente antiga, mulheres de<br />

penteados monumentais, homens de barba... Guardanapinhos de<br />

croché. Mamãe gorducha, fazendo tricô, falando em fazer<br />

economias, suspirando e queixando-se da vida. Papai, de barba<br />

crescida, comentando a alta dos gêneros, a política, as<br />

partidinhas de pôquer...<br />

Chinita sonhava com outro ambiente mais moderno, mais<br />

fino, mais limpo: alta-roda, homens de casaca, mulheres com<br />

vestidos decotados, perfumes, jóias...

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