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sol numa preguiça adormentadora.<br />
O jardineiro lá fora solta um berro. Noel desperta.<br />
E de novo solta o pensamento. Era possível que Debussy<br />
tivesse uma voz áspera como a do jardineiro. Possível também<br />
que à tarde fosse regar as suas flores. E que tivesse dívidas a<br />
pagar. E dissesse palavras feias. E fizesse gestos violentos.<br />
Bem possível também que, como o jardineiro, não gostasse de<br />
tomar banho. Mas o Debussy verdadeiro ficou aqui nesta<br />
melodia que o disco prendeu. Tudo o que era humano e mortal,<br />
que era resíduo, foi eliminado (menos o coral dos sapos) para<br />
ficar só a melodia de desenho puro, música de anjos, música<br />
de fadas...<br />
E graças à vitrola — pensa Noel — eu a posso ouvir com<br />
o mínimo possível de interferência humana. Se estivesse no<br />
teatro, ouvindo uma grande orquestra executar esta mesma<br />
música, teria de ficar na presença de criaturas que tossem,<br />
pigarreiam, amassam papéis de balas, cheiram bem ou mal;<br />
teria de ver os músicos que suam e bufam e ficam vermelhos,<br />
um maestro que agita a cabeleira e faz gestos grotescos... No<br />
entanto este móvel de nogueira me dá a melodia quase pura.<br />
Um milagre do gênio de Edison combinado com o esforço de<br />
outros pequenos inventores anônimos, mais o talento<br />
comercial dos homens que fundaram a Victor Talking Machine<br />
Co., mais o maestro Stokow sky e as muitas dezenas de<br />
músicos que formam a Orquestra Sinfônica de Filadélfia, e<br />
ainda principalmente o sonho de Debussy, e o esforço de uma<br />
centena de operários anônimos, inclusive as abelhas que<br />
fornecem cera para os discos... Para ele tudo isto é um conto<br />
de fadas, uma obra de magia.<br />
A melodia vai morrendo. Bem como madrinha Angélica<br />
no fim do serão, falando atrapalhado porque está começando a<br />
cochilar. A última nota se dissolve no ar e fica agora só o coro<br />
longínquo dos sapos, insistente, igual, imperturbável. Parece<br />
madrinha Angélica a roncar, com a cabeça caída para o peito,<br />
enquanto Noel, de olhos arregalados, está ainda sob a<br />
influência do sortilégio da história.<br />
Dindinha Angélica morreu, sua voz desapareceu do<br />
mundo, ninguém a gravou em disco. (Só no fundo, bem no<br />
fundo da memória de Noel, ela se repete num sonido muito<br />
vago, muito incolor, muito frágil que o tempo um dia apagará.)<br />
Mas a melodia de Debussy está presa na chapa negra... Basta<br />
erguer o diafragma e recomeçar.<br />
Noel caminha para a vitrola.<br />
E Debussy reconta em sua língua as histórias da dindinha<br />
preta.<br />
Teotônio Leitão Leiria dá um chupão mais forte no<br />
charuto e solta para o ar uma fumarada espessa. Como é bom<br />
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