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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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introduzir-se na sociedade, fazer-se querido. Não tendo valor<br />

próprio...<br />

— Não quer sentar um pouquinho?...<br />

Leitão Leiria faz um aceno afirmativo de cabeça.<br />

Sentam-se. Zé Maria procura assunto. O outro prossegue na<br />

composição do artigo.<br />

Não tendo valor próprio, veste-se do brilho ilusório dos<br />

enfeites que se compram e procura agradar com presentes<br />

pródigos, festas e banquetes.<br />

— Gosta da casa?<br />

— Admirável — diz Leitão Leiria com gravidade. —<br />

Verdadeiramente admirável.<br />

Como que movido por uma mola, Zé Maria ergue-se num<br />

salto:<br />

— Que cabeça, a minha! Vou le mostrar a casa. Vamos<br />

ver primeiro lá em riba...<br />

Dirigem-se para a escada.<br />

A música cessa. Palmas. O criado chega com as taças de<br />

champanha.<br />

— Nós ia se esquecendo da beberrança — diz Zé Maria.<br />

Volta-se e estende a mão para a bandeja.<br />

Maximiliano estende a mão ossuda para apanhar o copo<br />

de leite que a mulher lhe dá.<br />

— Tome todo. O doutor mandou.<br />

O quarto do tuberculoso está abafado. Anda no ar um<br />

cheiro pestilencial. O médico recomendou que deixasse a<br />

janela aberta, mas a mulher do doente não abre, supersticiosa.<br />

Dizem que, à noite, a morte entra pelas janelas abertas. Além<br />

disso foi uma corrente de ar que deixou o marido assim.<br />

Maximiliano toma o leite. Um acesso de tosse o sacode e<br />

uma mancha de sangue vermelho e vivo tinge o leite.<br />

A mulher olha, com cara impassível. Na porta, os dois<br />

filhos espiam. Que é que ela vai fazer? O doutor disse que não<br />

tem jeito. É questão de mais um dia menos um dia. Agora, o<br />

remédio é esperar. A morte chega, ele pára de tossir, pára de<br />

sofrer. O velório, o enterro e depois todos descansam. Pode ser<br />

que aconteça alguma coisa de bom. Mesmo que não aconteça<br />

não faz mal. Sem ele ali na cama. sofrendo e vendo miséria,<br />

vai ser melhor. Ela tem tempo de trabalhar, procurar uma<br />

ocupação, mandar os guris para a escola.<br />

Maximiliano está agora com a cabeça atirada para trás,<br />

cansado do esforço. Sua respiração é estertorosa e difícil. A<br />

luz da vela alumia apenas uma parte do quarto. Ao redor da<br />

zona de luz, a sombra. Na sombra os ratos correm e conspiram.<br />

Faz calor. A rua hoje está alegre. O gramofone do vizinho<br />

continua a tocar. A mesma valsa.<br />

Os olhos de Maximiliano se voltam para a porta. Ele diz<br />

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