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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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— Não vens comer, menina?<br />

A voz de D. Maria Luísa, chorosa e arrastada, chega aos<br />

ouvidos de Chinita. Ela tem a impressão de que, passando por<br />

uma esquina, ouviu um mendigo dizer, lamuriente: Uma<br />

esmola pr’um pobre cego!<br />

Chinita bem pode descer a escada com naturalidade e ir<br />

para a mesa. Mas ela quer gozar inteirinho o prazer de morar<br />

numa casa rica como esta, numa vivenda “de cinema”. Vai<br />

descendo devagar. (Na sua cabeça soa uma melodia lindíssima<br />

ao ritmo da qual ela se move...) Passa a mão pelo corrimão<br />

polido. O trilho de desenho confuso e multicor lhe abafa os<br />

passos. Chinita respira forte: o cheiro da comida se mistura ao<br />

das flores. A cabeça de papai se destaca contra o vitral<br />

iluminado — uma ceia de Cristo em tamanho natural. (Cinco<br />

contos e oitocentos.)<br />

Chinita senta-se à mesa.<br />

Zé Maria se anima.<br />

— Então? E a festança, hein? — pergunta.<br />

— Se Deus quiser, papai.<br />

— Vou fazer correr champanha como água.<br />

A cara do coronel reluz de gozo. D. Maria Luísa suspira.<br />

— Que é que tu achas, mamãe, fazemos sanduíches,<br />

croquetes e... que mais?<br />

D. Maria Luísa ergue os olhos de mártir:<br />

— Não sei... — geme ela — eu não mando nada aqui, não<br />

sou ninguém nesta casa.<br />

— Ora, mãe, não seja boba!<br />

Chinita e o pai discutem pormenores. O coronel quer que<br />

haja muita comida. Manda-se matar um, dois ou três porcos e<br />

uma dúzia de galinhas. Nada de misérias. Todo o mundo deve<br />

voltar para casa com a pança cheia.<br />

O coronel quer que tudo esteja muito claro.<br />

— Vamos botar luz em todo o quintal...<br />

Chinita se escandaliza:<br />

— Quintal? Oh! papai, diga parque... é mais bonito e no<br />

fim de contas é verdade.<br />

— Pois é... parque. Mandei botar muitos bicos grandes.<br />

Vai ficar claro que nem circo de cavalinhos.<br />

E ao pronunciar esta última palavra, Zé Maria sente uma<br />

saudade vaga e suave de um espetáculo de burlantins. Lembrase<br />

do último a que assistiu, uma companhia muito boa, com<br />

palhaços muito engraçados, um. malabarista japonês, a moça<br />

do arame (pernas grossas), aquele cheiro de jaula, o leão<br />

magro e, o fim, a pantomima. Uma nuvenzinha leve e breve de<br />

tristeza passa pelo rosto dele.<br />

— O Leitão Leiria vem com a família...<br />

— Claro! — diz Chinita.<br />

— O Moreira com a mulher...<br />

— Prometi ir buscar a Vera no meu carro...<br />

A palavra carro vale por uma punhalada no coração de D.<br />

Maria Luísa. Carro: automóvel: a baratinha bege de Chinita:

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