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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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esconder de si mesma a verdade que vive dentro de seu<br />

coração...<br />

Passa as horas distraída a escrever cartas comerciais no<br />

escritório, a fazer o serviço da casa, ou a ler os seus livros —<br />

mas lá de repente, a propósito dum raio de sol, dum pedaço de<br />

céu, duma nota de música, lhe vem à memória a imagem do<br />

amigo — aquele menino de olhar bom, aquela cabeça frágil<br />

que desperta, que lhe dá vontade de acariciar.<br />

Mas a água já deve estar fervendo. Fernanda volta-se<br />

rápida e grita:<br />

— Pedrinho, venha tomar café!<br />

Põe a aquecer o leite para a mãe. D. Eudóxia geme no<br />

quarto.<br />

Os cabelos lambidos e úmidos, Pedrinho entra na<br />

varanda.<br />

— Bom dia.<br />

Assobiando, senta-se à mesa. Fernanda serve-lhe café e<br />

observa:<br />

— Por que botaste hoje a roupa nova?<br />

— Ora, mana...<br />

— Vais estragar a fatiota no serviço...<br />

Pedrinho não responde.<br />

Fernanda toma o seu lugar à mesa.<br />

— E quando tiveres tempo, corta essas unhas...<br />

Pedrinho, que estava com a mão direita estendida,<br />

encolhe depressa os dedos.<br />

Fernanda despeja café na sua xícara. O rapaz perde-se<br />

em pensamentos. Vai hoje pedir ao gerente para sair meia<br />

hora mais cedo. Quer ter tempo de passar pela Sloper a fim de<br />

comprar o colar para Cacilda. Ela naturalmente vai ficar<br />

satisfeita. Deus queira que fique.<br />

— Pedrinho, não voltes muito tarde para o almoço.<br />

Ele sacode a cabeça.<br />

À flor do lago preto que há na xícara de Fernanda,<br />

reflete-se a janela iluminada. Ela pensa em Noel.<br />

Contente da vida, Armênio sai para a rua assobiando uma<br />

valsa de Strauss. Que dia bonito para descrever numa crônica!<br />

Na manhã de ouro as silhuetas gráceis das nossas<br />

beldades...<br />

Armênio pára diante duma vitrina que expõe artigos<br />

para homens e namora uma gravata cor de vinho com bolotas<br />

dum verde oliva. Deve ser pura seda e deve sentar<br />

admiravelmente bem com a minha roupa castanha. Vou<br />

comprar.<br />

Mas continua a andar. Pára na frente de outra vitrina.<br />

Chapéus Stetson. Um manequim de cera — a paródia dum<br />

homem de cabelos louros, sobrancelhas hirsutas, lábios e faces<br />

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