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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Como tantas heroínas de O Tempo e o Vento, a vida de<br />

Maria Valéria conheceu o fermento das dificuldades.<br />

Independente, corajosa, doceira, cozinheira, mãos habilidosas<br />

na renda de bilro, tomara conta da casa desde menina, quando<br />

ficou órfã.<br />

Após a morte da irmã, não arreda pé do Sobrado, onde<br />

permaneceu solteira até o fim de seus dias, uma longa vida<br />

em que ela foi a providência geral da família.<br />

Verdadeira mãe, com sua bondade carrancuda ajuda os<br />

sobrinhos a crescerem. Quem vai conviver com essa admirável<br />

titia é seu afilhado Rodrigo, bisneto do famoso capitão do<br />

mesmo nome. Formado em Medicina, volta ao Sobrado. Este<br />

passa a ser um centro social de grande importância em Santa<br />

Fé. A propósito de uma observação do pai sobre o interesse<br />

das moças casadoiras, responde Rodrigo:<br />

“— Qual! Só tenho uma moça que me ama e me espera:<br />

Chama-se Maria Valéria e mora no Sobrado”.<br />

Quando seu sobrinho-neto, Floriano Cambará, de volta de<br />

umas comemorações de um certo Ano Novo, arruma as coisas<br />

no espírito para escrever a saga que projetava, retorna ao<br />

casarão e ouve o ranger do balanço da cadeira de Maria<br />

Valéria, já quase nonagenária, mas ainda lúcida, exprime todo<br />

o conteúdo humano da velha tia nesta frase:<br />

“O Sobrado ainda está vivo”.<br />

O Tempo e o Vento se decompõe em três momentos, cada<br />

um deles dominado por uma destas figuras de sua trindade<br />

feminina: o da epopéia, que apanha os primórdios do<br />

Continente, com Ana Terra; o da história, abrangendo o fim do<br />

Império e os primeiros anos da República, sob a tutela de<br />

Bibiana e o terceiro, o da crônica da sociedade<br />

contemporânea, que tem como centro Maria Valéria. As duas<br />

últimas conviveram no Sobrado. Numa ocasião foram<br />

surpreendidas pela observação do Dr. Winter:<br />

“Winter voltou a cabeça para a moça que estava a seu<br />

lado” (Maria Valéria). “Tinha uma simpatia particular por<br />

aquela criatura que todo o mundo achava feia, mas na qual ele<br />

descobria um encanto secreto e meio áspero, muito mais<br />

atraente para seu gosto do que a ‘boniteza’ comum de Alice.<br />

Sempre que a via, muito alta, tesa e esbelta, o rosto alongado,<br />

os grandes olhos negros um pouco saltados, o nariz longo e<br />

fino, a boca rasgada de expressão um pouco sardônica, ele não<br />

podia deixar de fazer uma comparação: ‘comprida e aguda<br />

como uma lança’. A própria voz de Maria Valéria tinha algo de<br />

contundente. Em várias ocasiões, com intuito de conhecê-la<br />

melhor, Winter procurara levá-la a confidências, pois<br />

suspeitava de que havia naquela criatura muito mais coisas do<br />

que seus gestos e palavras revelavam. Não conseguira,<br />

entretanto, quebrar aquela espécie de armadura de gelo que<br />

envolvia a filha mais moça de Florêncio Terra. Aos vinte e<br />

quatro anos Maria Valéria tinha mentalmente quase a idade de<br />

Bibiana. Quando as duas mulheres se encontravam, Winter

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