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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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frases que já sabe de cor...<br />

“seu marido, esse homem que, não respeitando os<br />

cabelos brancos que tem na cabeça nem a virtuosa<br />

esposa que recebeu no altar perante Deus e a Sociedade,<br />

compartilha do leito duma prostituta que vive a suas<br />

expensas num luxuoso apartamento do Edifício<br />

Colombo”.<br />

A princípio ela não compreendeu. Tanta palavra<br />

amontoada e difícil... Mas depois a luz se fez. A carta queria<br />

dizer que o marido dela tinha uma amásia. Dizia até onde ela<br />

morava.<br />

A carta foi entregue na porta. Anônima! Ela sempre teve<br />

medo das cartas anônimas.<br />

D. Maria Luísa apaga a luz e senta-se no sofá, com a<br />

carta na ponta dos dedos. Silêncio no casarão, um silêncio frio<br />

de cemitério. Anoitece aos poucos.<br />

D. Maria Luísa rumina a sua desgraça. Tudo está acabado.<br />

O rapaz se fina aos poucos, consumido pelas farras, pelas<br />

noites passadas em claro, pela bebida. A filha perdeu todo o<br />

respeito pelos pais, vive na rua, solta, como uma mulher da<br />

vida, desbocada, atrevida. Zé Maria perdeu o governo da casa e<br />

agora arranjou uma amante. Amigado! Maldito dinheiro! Ela<br />

bem sabia que dinheiro de loteria traz desgraça.<br />

A escuridão se faz mais funda.<br />

D. Maria Luísa recorda.<br />

Está em Jacarecanga e a hora do jantar se aproxima.<br />

Vem da cozinha um cheiro de churrasco. Na frente da casa<br />

brincam as crianças da vizinhança. A negra Arminda caminha<br />

dum lado para outro diante do fogão, mexendo nas panelas.<br />

Manuel vem chegando da rua, vai para o banheiro, cantando.<br />

Chinita acabou de se vestir, está falando em ir ao cinema com<br />

as filhas do coletor. Zé Maria há pouco veio da loja e pede<br />

água morna para lavar os pés. O armário da varanda cheira a<br />

noz-moscada. A madressilva do muro tem um perfume mais<br />

forte quando anoitece. Tudo tão bom, tão calmo... Depois a<br />

família se. reúne ao redor da mesa. Zé Maria conta coisas da<br />

loja: discussões com o Madruga, boatos da política. Manuel fala<br />

numa fita boa que vão passar no Ideal. Chinita diz que o<br />

vestido amarelo pode ser reformado, fica muito bonitinho com<br />

um enfeite marrom...<br />

D. Maria Luísa começa a chorar.<br />

O relógio grande bate sete badaladas que ficam<br />

ressoando pelas peças grandes da casa.<br />

Zé Maria telefonou: “Não me espere. Vou ficar na cidade<br />

até de noite”. Chinita também mandou um recado igual.<br />

Manuel não dorme em casa há dois dias...<br />

D. Maria Luísa sente vontade de morrer. Porém mais<br />

forte que essa vontade de morrer é a de voltar para<br />

Jacarecanga, à procura da vida antiga.

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