24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

como seria bom lidar com elas...<br />

Começa a enxugar o prato, perdida nos seus<br />

pensamentos. E quando imagina de novo as caras dos alunos,<br />

surpreende-se a descobrir no meio delas o Noel do passado, o<br />

Noel que ela levava para a escola pela mão. Mas o Noel<br />

menino que ela vê agora tem muito, muito do Noel homem<br />

com quem ela esteve ontem em Ipanema.<br />

A voz de D. Eudóxia vem da varanda:<br />

— Não gastes muita água. O dono da casa já reclamou.<br />

Sem responder, Fernanda depõe o prato em cima da<br />

mesa e começa a enxugar as mãos.<br />

Agora a aula se sumiu e só lhe ficou Noel no pensamento.<br />

E por mais que ela queira esconder, por mais que se queira<br />

iludir, a verdade se lhe revela mais uma vez.<br />

E essa realidade que ela se tem esforçado sempre por<br />

não reconhecer, o sentimento que tem procurado abafar com<br />

escusas mentirosas agora vem à superfície, nesta hora morna<br />

e calada de repouso.<br />

Não é possível iludir-se mais. Ela ama Noel. (Mesmo<br />

mentalmente a palavra amor tem um som equívoco, quase<br />

ridículo. Se inventassem outra para substituir o termo tão<br />

batido?) Seria bom que ambos pudessem seguir num<br />

prolongamento daqueles dias da infância, como dois bons<br />

amigos, sempre juntos... Afinal, por que ela não há de ter<br />

direito também a um pouco de felicidade como todo o mundo?<br />

— Fernanda! — Outra vez a voz da mãe. — Ainda não<br />

terminaste esse serviço?<br />

E o baque surdo e ritmado da cadeira de balanço.<br />

— Já está pronto! Já está pronto, dona Rabugenta!<br />

Volta aos seus pensamentos. Não, é absurdo. As linhas<br />

paralelas jamais se encontram. (Lembranças da escola de D.<br />

Eufrásia Rojão que dizia com sua voz metálica: “Linhas<br />

paralelas são linhas retas eqüidistantes que por mais que se<br />

prolonguem nunca se encontram.”) Ela e Noel pertencem a<br />

mundos diferentes. Os pais dele se oporiam ao casamento. Ele<br />

mesmo não teria coragem para tanto... Tão desamparado, tão<br />

sem vontade... E, além do mais, quem garante que ele a ame?<br />

Não. É melhor pensar nas cartas da firma. Acusamos o<br />

recebimento do seu estimado favor...<br />

Fernanda desce as mangas do vestido e vai apanhar o seu<br />

livro, para aproveitar os minutos que lhe restam.<br />

Pedrinho largou a novela. Não pôde ler nem duas linhas:<br />

sempre a imagem de Cacilda a persegui-lo a todo instante.<br />

Não consegue esquecer a rapariga. Pensa nela a todas as horas.<br />

Engana-se nas contas, erra nos talões, o gerente da loja já<br />

reclamou. Mas é inútil... A idéia de que Cacilda vive num beco<br />

imundo, na janela, oferecendo-se a todos os homens que<br />

passam, lhe é insuportável. No entanto Cacilda é uma boa<br />

moça. Por que será que nunca conta nada do seu passado?<br />

Parece tão conformada, tão feliz... Outras contam histórias...<br />

“Eu era noiva, meu noivo me fez mal, meu pai me botou para

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!