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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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peculiaridades... Instruem muito, as leituras deste gênero. São<br />

um estímulo. Precisamos beber coragem e sabedoria nessas<br />

fontes...<br />

E agora, lutando contra a página de composição maciça<br />

em caracteres miúdos, Teotônio se sugestiona para poder<br />

continuar a leitura. Há dentro dele duas personalidades<br />

distintas. — Uma é a do homem sensato que acha que o livro<br />

deve ser lido, porque é instrutivo, e edificante. O outro é o<br />

Leitão Leiria verdadeiro, o animal livre que acha mais sabor<br />

num romance policial ou numa história galante do que nas<br />

páginas sisudas e graves. — Continua — diz um. Minhas costas<br />

estão doendo — queixa-se o outro. — Mira-te neste espelho que<br />

é Bismarck: ele era forte e constante. — Mas eu posso ler<br />

outro dia. — Leia agora, veja que homem! — Eu sei, mas estou<br />

aborrecido. — Queres seguir a política? Então? Procura imitar<br />

Bismarck! Haverá padrão melhor?<br />

E Leitão Leiria, ao chegar ao fim duma página, verifica<br />

que não compreendeu nada do que acaba de ler. Volta à<br />

primeira linha. O autor conta da mocidade de Bismarck.<br />

Descobrindo um trecho admirável, Leitão Leiria levanta-se<br />

com o livro na mão e vai mostrá-lo à mulher:<br />

— Olha, olha só que bonito. — E lê:<br />

“De noite, quando bate duas horas, infelizmente com<br />

mais fervor do que se orasse pela salvação da minha<br />

alma, eu oro pelos meus.”<br />

— Isto é um trecho da carta que Bismarck escreveu à<br />

mulher.<br />

D. Dodó sorri.<br />

— Não sei quem é esse Bismarck, mas já estou<br />

simpatizando com ele...<br />

Entre paternal e importante, Leitão Leiria explica:<br />

— Bismarck, minha filha, foi um grande estadista.<br />

Alemão.<br />

Volta para o escritório e retorna à posição.<br />

A luta recomeça. Leitão Leiria faz um esforço heróico<br />

para continuar a leitura. Acha a cadeira muito dura, as costas<br />

lhe doem, a luz é fraca, as letras do texto são muito miúdas.<br />

E um desejo traiçoeiro e mau lhe vai invadindo o ser.<br />

Como uma criança que planejava uma travessura, ele olha<br />

com o rabo dos olhos na direção da mulher. D. Dodó continua a<br />

movimentar as agulhas do tricô, absorta no seu trabalho.<br />

Leitão Leiria ergue-se de mansinho.<br />

— Queres alguma coisa, meu filho? — pergunta Dodó.<br />

Teotônio sente um pequeno sobressalto desagradável.<br />

— Não, minha filha, não é nada...<br />

Dodó não desvia os olhos do trabalho. Silenciosamente<br />

Teotônio vai até a prateleira de livros e tira dela um volume<br />

de capa amarela. Mansamente volta para a mesa e abre o<br />

livro, dissimulando, conservando aberto a pequena distância o

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