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família. Foi por isso que não se opôs a que a velha tomasse<br />
conta de tudo. Era uma preta enérgica e autoritária, neta de<br />
escravos do avô de Honorato. Nos primeiros meses do<br />
casamento, preocupada com festas, vestidos e relações,<br />
Virgínia esqueceu a casa. Tia Angélica firmou então o seu<br />
governo. Desde madrugada andava de pé dum lado para outro,<br />
dando ordens para a criadagem. Era ela quem determinava<br />
tudo, quem cuidava da conta do armazém, das roupas do casal,<br />
do jardim. Quando Noel nasceu, tia Angélica tomou também<br />
conta dele. Não se fazia nada sem consultar a rainha preta.<br />
— Tia Angélica, que é que você acha, compramos ou não<br />
compramos uma chácara na Tristeza?<br />
A voz da negra vinha lá do fundo da garganta, esfarelada<br />
e áspera:<br />
— Compra nada. Não precisa.<br />
E não se comprava. Noel cresceu. Tia Angélica lhe<br />
contava histórias de fadas, dava-lhe mimos, prendia-o em casa.<br />
— Tia Angélica, deixe esse menino ir brincar na rua<br />
senão ele se cria um maricas! — observava Virgínia.<br />
Mas Angélica investia para ela, agressiva como uma<br />
galinha que defende os seus pintinhos.<br />
— Não deixo! O lugar dele é dentro de casa! Noel não vai<br />
se misturar com os moleques.<br />
Quando Virgínia cansou da vida de festas e relações<br />
(canseiras que duravam apenas alguns meses, findos os quais<br />
recrudescia a paixão pelas festas, pelas relações novas e pelas<br />
novidades) voltou-se para a vida do lar. Quis tomar conta de<br />
tudo, mas era tarde. Tia Angélica estava firme no poder,<br />
defendeu-se com ferocidade. Houve cenas, Honorato ficava-se<br />
nos cantos, aniquilado, sem coragem de tomar partido, sem<br />
ânimo para dizer uma palavra. Angélica, porém, foi inflexível.<br />
Virgínia chorou nos primeiros dias. Julgou-se a mulher<br />
mais infeliz do mundo. Chegou a aborrecer o filho, só porque<br />
Noel ficava do lado da preta velha. Não era ela quem lhe<br />
contava histórias, quem lhe dava banho, quem lhe comprava<br />
doces, quem o ninava enquanto a mãe, toda bonita e<br />
perfumada, andava pelos bailes e teatros? Mas no fim de<br />
algumas semanas Virgínia se acomodou à situação. Por fim,<br />
esqueceu-a. Nas vésperas de Noel entrar para a Academia<br />
(tinha feito preparatórios brilhantes) tia Angélica morreu. Foi<br />
como se de repente desaparecesse um rei que os súditos<br />
julgassem insubstituível. Noel chorou sentidamente. Honorato<br />
derramou algumas lágrimas que não foram muitas nem muito<br />
sentidas. Sentir demais a morte da preta velha que o criara —<br />
pensou ele — seria de algum modo desfeitear a mulher que<br />
recebera legalmente diante do altar, a mulher, com quem no<br />
fim de contas tinha de viver o resto da vida.<br />
Ao saber da morte de Angélica, Virgínia lamentou a<br />
perda da criada mas bem no fundo, duma maneira quase<br />
inconsciente, festejou o desaparecimento da rival. Não teve<br />
coragem de tomar conta da casa. O número de criados foi