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— E então?<br />
Noel passa desamparadamente a mão pela cabeça, e vai<br />
dizendo, como se falasse para si mesmo:<br />
— Custa, mas estou resolvido... Disse que aceitava...<br />
Quem sabe? Talvez me adapte. Talvez vença e consiga ficar<br />
humano. Tu te lembras daquela história do Pinitim que tia<br />
Angélica me contava? Pinitim subiu para a lua num balão de S.<br />
João e se viu no meio dos selenitas... Não entendia a língua<br />
deles, tinha fome e não sabia pedir comida, tinha sede e não<br />
sabia pedir água. Ninguém entendia a fala de Pinitim. Pinitim<br />
foi ficando magro, com saudade do seu mundo...<br />
— E então?<br />
— Eu sou como Pinitim... Não entendo a língua do mundo<br />
dos homens. Os homens não entendem a língua do meu mundo.<br />
Não é horrível?<br />
Noel sente no braço a pressão dos dedos de Fernanda.<br />
— Mas Noel, o mundo de Pinitim existia ele voltou e de<br />
novo foi feliz. O teu mundo é uma ilusão. Não há volta<br />
possível. O teu país maravilhoso acabou com a infância e com<br />
tia Angélica. No dia em que te convenceres disto tu te<br />
adaptarás...<br />
— Mas é que eu procuro convencer-me e não consigo...<br />
— Outra ilusão: não procuras. Alimentas a tua mentira<br />
com outra mentira, com livros, música, coisas que te<br />
distanciam do mundo de verdade. É preciso que te convenças<br />
de que tia Angélica te contava histórias de mentira...<br />
— Mas eram histórias bonitas...<br />
— A vida é uma história bonita. Uma aventura, eu já te<br />
disse, em que a gente nunca sabe o que vai acontecer depois.<br />
Não é sensacional? A incerteza do amanhã, as diferenças de<br />
temperamento, os choques, os conflitos, o amor e até mesmo o<br />
ódio... Não é magnífico?<br />
Noel se lembra do entusiasmo de Fernanda no tempo em<br />
que, no colégio, ela defendia as suas idéias.<br />
Agora ela fala com a mesma convicção, a mesma<br />
firmeza, o mesmo calor. Fernanda continua:<br />
— Talvez seja melhor escreveres a história da tua<br />
infância. Mas escreve e analisa, disseca, decompõe e verás que<br />
tudo era mentira. Era um mundo de papel estanho e fogos de<br />
artifício. Talvez escrevendo consigas matar a mentira.<br />
— Talvez...<br />
— Aceita a proposta do teu pai. Será um passo na<br />
direção da vida e dos outros homens, do mundo de verdade.<br />
Pinitim precisa convencer-se de que na lua só há montanhas<br />
geladas.<br />
Noel lança o derradeiro argumento:<br />
— Mas para quê? Para quê?<br />
Fernanda não se dá por vencida:<br />
— Ora, olhando o mundo com os olhos humanos, estarás<br />
em condições de descobrir a beleza de certas paisagens que eu<br />
te quero mostrar.