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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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João Benévolo tem a impressão de que criou asas e anda<br />

voando. Uma dor contínua no estômago, fome, cabeça oca,<br />

moleza no corpo.<br />

O relógio do edifício dos Correios e Telégrafos diz que<br />

são quatro horas e vinte. O sol brilha, as pessoas, os<br />

automóveis e os bondes passam indiferentes. Os edifícios<br />

sobem para o céu e o céu parece não ver a desgraça dos<br />

homens.<br />

João Benévolo pára na frente da vitrina dum<br />

restaurante: empadas, croquetes, perdizes assadas, um peru<br />

enorme pelado e temperado, pronto para ir para o forno;<br />

presuntos cor-de-rosa, frutas...<br />

João Benévolo olha e come mentalmente. O Rei Baltasar<br />

está no seu festim. Os pajens entram trazendo enormes<br />

travessas onde os faisões assados fumegam. Os molhos vêm<br />

em terrinas de prata, perfumados e brilhantes. Mas a gente<br />

não pode ficar a vida inteira parado diante duma vitrina...<br />

João Benévolo continua a andar. Que estará acontecendo<br />

lá em casa? Faz... — ele conta nos dedos, uma, duas, três... —<br />

faz oito horas que saiu. Decerto não comeram nada. Ou<br />

comeram: D. Veva ficou com pena e mandou um prato.<br />

Ninguém morre de fome no Brasil. Já ouviu dizerem isto...<br />

O sol bate em cheio nas fachadas. Os edifícios do outro<br />

lado já vão projetando uma sombra violeta sobre o<br />

calçamento da rua.<br />

Muita gente que vai e vem. Parece que ninguém me<br />

enxerga. Chegam a dar encontrões na gente. Fraco como<br />

estou...<br />

Os bondes passam num trovão, amarelos e hostis. João<br />

Benévolo pensa em Xangai. Será que em Xangai há bondes?<br />

Deve haver.<br />

Mas, que fazer? Voltar para casa com as mãos abanando?<br />

Não. Com que cara ele vai se apresentar à mulher? Ora, pode<br />

inventar que encontrou um amigo de infância, muito rico e<br />

muito bom que lhe prometeu um emprego. Pode inventar<br />

outras coisas... Não propriamente mentiras, — porque nada é<br />

impossível... Suponhamos que de repente surge um conhecido<br />

bem arranjado na vida: “João Benévolo, que é isso, rapaz?<br />

Queres um emprego? Vem comigo.”<br />

Mas não aparece ninguém. As pessoas passam sem olhar.<br />

As vitrinas mostram comidas que ele não pode comprar. João<br />

Benévolo de repente começa a sentir uma vergonha muito<br />

grande, pois lhe ocorre que todos podem saber da sua história,<br />

ler na sua cara e na sua roupa que ele deixou abandonados em<br />

casa, sem dinheiro e sem nada, uma mulher e um filho.<br />

Não. E preciso voltar. João Benévolo contínua a andar,<br />

procurando as ruas de mais movimento, mas os seus passos o<br />

levam para direção oposta à da Travessa das Acácias.<br />

Melhor é ir distrair-se no cais, olhar o rio. Deve estar<br />

bonito. Ficar triste não adianta. Tristeza não mata a fome de<br />

ninguém.

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