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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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(Esta voz quase cariciosa, este tom de interesse paternal<br />

só é possível na ausência de Virgínia.)<br />

— Muito bem.<br />

O olho triste do rapaz fita a cara corada e feliz.<br />

De novo a voz branda e líquida:<br />

— Querubina, o meu café. A criada serve-o.<br />

Virgínia desce também. Quando ela chega, a solidão<br />

aumenta. Faz-se um silêncio demorado. Ela é a primeira a<br />

falar:<br />

— Noel, me disseram ontem na casa das Assunção que tu<br />

andas de agarramentos com a Fernanda...<br />

A face lisa e clara do rapaz se tinge de vermelho. Seus<br />

olhos castanhos ganham uma tonalidade quente.<br />

— Mamãe!<br />

Esta palavra, pronunciada com uma veemência tímida, é<br />

o protesto máximo que ele ousa formular. Virgínia sorri com<br />

malícia.<br />

— Eu quero só ver se isso dá em casamento...<br />

— Tu não compreendes...<br />

— Ah! — Virgínia solta uma risada rascante, seca,<br />

desafinada. — Tu não compreendes — repete ela, parodiando a<br />

voz do filho. — Não. Não compreendo. O único inteligente da<br />

casa és tu... Só tu sabes as coisas...<br />

Honorato descerra os lábios polpudos para proferir uma<br />

palavrinha de protesto. Mas a expressão do rosto da mulher o<br />

desencoraja.<br />

— Eu quero só ver — continua ela — como é que vais<br />

casar...<br />

Noel desvia os olhos dos olhos da mãe. Uma ruga de<br />

contrariedade lhe vinca a testa. A expressão de seu rosto é<br />

dolorosa, mas Virgínia continua a falar, irônica, com uma<br />

raiva fininha, sentindo um prazer miúdo e perverso em<br />

alfinetar... Porque é assim que ela se vinga. Nela a necessidade<br />

de agredir os outros é uma força irresistível. Tem agora<br />

diante de si os seus guardas, os homens que lhe tiraram os<br />

movimentos, que consciente ou inconscientemente lhe tolhem<br />

a liberdade. Por causa do marido ela não tem a liberdade de<br />

gozar da companhia de outros homens mais brilhantes, mais<br />

moços e mais agradáveis. Por causa do filho é forçada a uma<br />

atitude insuportável de mãe de família, de senhora<br />

respeitável. São limitações que ela não pode tolerar. Se põe<br />

mais rouge nas faces, mais bâton nos lábios, lá estão os olhos<br />

do rapaz fixos nela, numa censura contida, lá está a cara<br />

desconsolada do marido que, não dizendo nada, diz tudo. Os<br />

seus desejos de boa companhia, festas, ruídos e elogios são<br />

recebidos com desagrado por aqueles dois homens. E o pior é<br />

que esse desagrado não se exprime em palavras: ela o sente<br />

nos olhares, nas atitudes e no bojo mesmo do silêncio que se<br />

fecha sobre os três, quando estão juntos.<br />

— Onde é que o doutor vai arranjar dinheiro pro<br />

casamento?

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