24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Mas a explosão é fraca. Depois da chama, gelo. Mal a<br />

última sílaba do nome de Ponciano se esvai no ar, João<br />

Benévolo esquece o ressentimento, o rival, a miséria. Neste<br />

momento ele só tem uma necessidade imperiosa: livrar-se da<br />

mulher.<br />

— Está bem... — concorda fracamente.<br />

Laurentina torna a fechar os olhos:<br />

— Mas vai mesmo... Vai, pede, pode ser que ele arranje.<br />

— Pois sim.<br />

— Mas vai agora!<br />

João Benévolo olha para o relógio:<br />

— Uma e dez. Ainda é cedo. Ele só chega às três no<br />

escritório...<br />

Laurentina suspira e torna ao quarto de dormir onde o<br />

Poleãozinho está lendo um número atrasado do “Tico-Tico”.<br />

Muito preocupado com a sorte do doutor, João Benévolo<br />

volta à novela.<br />

O doutor nem pestanejou. Os olhos de ambos se<br />

cruzaram em desafio, mas o capitão logo baixou os<br />

seus e guardou a navalha; rosnando como um cão<br />

batido, voltou a sentar-se.<br />

João Benévolo suspira, aliviado.<br />

Ao menos no livro as coisas correm como a gente deseja.<br />

Enrolada no xale (apesar do calor da hora) D. Eudóxia<br />

está sentada na sua velha cadeira de balanço que, ao oscilar<br />

para a frente e para trás, produz um ruído surdo.<br />

Fernanda termina de lavar os pratos do almoço.<br />

Pedrinho, deitado na sua cama, lê uma velha brochura.<br />

Fernanda pensa com desprazer no serviço que vai ter<br />

esta tarde no escritório: cartas pedindo o resgate de títulos,<br />

comunicações a bancos, memorandos a fregueses do interior...<br />

A chapa de sempre. Depois, as enormes minutas de Leitão<br />

Leiria, cheias de adjetivos complicados, pretensiosas e ocas. E<br />

quando ele a manda datilografar os seus artigos políticos para<br />

o jornal? Santo Deus!<br />

A água escorre da torneira para a pia e, enquanto<br />

esfrega o último prato, Fernanda imagina como seria se ela<br />

conseguisse uma nomeação de professora. Uma escola num<br />

subúrbio, o convívio com as crianças, o quadro-negro, os<br />

mapas, as carinhas de todos os feitios, morenas, brancas,<br />

pálidas, coradas, gordas, magras, marotas, tristonhas,<br />

insolentes, assustadas. .. E o prazer de ensinar, sentar-se na<br />

classe com o aluno, e como irmã mais velha, ir lhe dizendo<br />

coisas, como quem conta uma história, sem carrancas, sem<br />

gritos, com amor, muito amor... Como ela adora as crianças e<br />

41

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!