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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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e flácida, olhos empapuçados, calva lustrosa e ar bovino. Está<br />

ele a sorrir-lhe com a mesma ternura dorminhoca de todas as<br />

manhãs. Seus cabelos ralos se espalham esvoaçantes sobre o<br />

crânio polido e rosado, e vem dele um cheiro todo particular:<br />

uma mistura de Jicky (perfume a que Honorato se mantém<br />

fiel há mais de vinte anos) com sarro de charuto.<br />

O pijama de listras roxas se dobra em rugas múltiplas<br />

em cima do corpo roliço. Honorato Madeira solta um bocejo<br />

cantado e feliz de quem tem a vida em ordem.<br />

Virgínia fica a contemplá-lo com uma fixidez absurda<br />

que tem origem neste desejo esquisito que ela sente de olhar<br />

longamente para o marido, só para poder aborrecê-lo mais e<br />

mais ainda.<br />

Honorato levantou-se. É baixote, pesado, ventrudo.<br />

Virgínia cruza as mãos sob a nuca e fica olhando para o<br />

forro, calada. O sono faz a gente esquecer... Às vezes nos traz<br />

sonhos agradáveis. Dormindo ela esquece que tem um filho de<br />

vinte e dois anos e um marido obeso; torna a sentir a leveza<br />

juvenil dos velhos tempos. Quando acorda, é para se ver no<br />

mesmo quarto de paredes cinzentas: o espelho triangular do<br />

penteador, o guarda-roupa lustroso de imbuia, o teto de<br />

estuque... E ao lado dela, na cama, aquele corpanzil quente,<br />

aquele homem que ronca, que tem confiança nela, no mundo e<br />

na vida...<br />

Do banheiro vem a voz dele:<br />

— Não te esqueças, Gigina. Tens hora marcada no<br />

instituto...<br />

A voz tem uma consistência de pomada. Virgínia<br />

resmunga um eu sei de má vontade e levanta-se bocejando.<br />

— A manhã está tão bonita...<br />

Honorato diz estas palavras com tanta ternura que<br />

parece um poeta enamorado das paisagens luminosas. No<br />

entanto vive preocupado com o feijão, com o arroz, com o<br />

milho... Por que não vende alfafa? Havia de ficar-lhe tão bem...<br />

— O Noelzinho já está de pé?<br />

A voz dele se faz ainda mais terna.<br />

— Ó Honorato, deixa dessas bobagens... Noelzinho... Como<br />

se ele fosse um bebê...<br />

O marido formula um tímido protesto:<br />

— Ora, Gigina...<br />

Tomada por uma sensação de sonolento tédio, Virgínia<br />

senta-se na banqueta do penteador. Do banheiro vem o ruído<br />

quase musical do gargarejo de Honorato. Até nisso ele é<br />

sempre igual todas as manhãs. O gargarejo é um gorjeio que<br />

dura sempre o mesmo tempo e tem sempre o mesmo tom.<br />

Passam-se os minutos.<br />

Honorato está agora atando a gravata, na frente do<br />

espelho.<br />

— Vamos ou não vamos hoje ao baile do Metrópole?<br />

— Claro que vamos, homem.<br />

Ele solta um grunhido lamentoso. A idéia de que hoje à

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