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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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competência e honestidade” (...) “Nunca os levava para o<br />

quarto sem primeiro entretê-los na sala de visitas com uma<br />

conversação bem educada e jamais se deitava com eles sem<br />

primeiro apagar a luz”. {38}<br />

Rodrigo as recebia no consultório para exames, onde elas<br />

se portavam com um pudor até meio inocente. Um dia chega a<br />

reproduzir para Maria Valéria um diálogo que mantivera com<br />

uma dessas suas “cortesãs”.<br />

“Maria Valéria escutou-o em silêncio e por fim disse:<br />

‘Agora só falta você trazer uma dessas piguanchas para<br />

almoçar aqui em casa’.<br />

Para escandalizar a Madrinha, Rodrigo replicou: ‘Por que<br />

não? São mulheres muito limpas e direitas. E fique sabendo<br />

duma coisa, Dinda: nunca me faltaram com o respeito’.” {39}<br />

No Incidente em Antares, os sete mortos que ressuscitam<br />

e vêm, Dona Quitéria à frente, numa estranha procissão que<br />

lembra ao pároco alarmado a chegada do Juízo Final, proceder<br />

ao julgamento dos vivos, num despudor de quem deitou fora a<br />

capa corpórea e pode dizer tudo, como Brás Cubas, há uma<br />

cena preciosa que atesta não só esta indulgência, mas também<br />

sua ternura pelos humildes e desprotegidos. Em geral as<br />

figuras ilustres são recebidas com uma séria repulsa,<br />

misturada de receio. Os que voltam do primeiro sono posmortem<br />

parecem não ter se libertado por completo de um<br />

certo senso de hierarquia, ainda têm resquícios de um decoro<br />

postiço. Não, porém, os humildes e derrotados que viveram a<br />

solidariedade da miséria. Erotildes, que morreu tuberculosa,<br />

não tem contas a pedir, não volta para julgar ninguém. Vem<br />

apenas procurar Rosinha, sua companheira de desgraças.<br />

Esta, quando vê a defunta chegar, não se alarma. Apenas<br />

se desculpa de ter ficado com seus haveres, seu vestido, seu<br />

sapato, bugigangas:<br />

“— Quando te botaram no caixão fui eu quem te arrumou<br />

direitinho, te penteei, botei ruge na cara, batom<br />

(...)<br />

— Devo estar medonha.<br />

— (...) para mim, viva ou morta, tu és sempre a Erotildes.<br />

— Engraçado não teres medo de mim. Vim pela rua<br />

assustando meio mundo. Vi uma mulher desmaiar de susto na<br />

minha frente. Um pintor de parede (...) caiu da escada. (...) Até<br />

os gatos e cachorros fogem de mim. E tu, nem água...” {40}<br />

Depois, na hora da despedida extrema, a derradeira<br />

mesmo, a resplandescência deste halo de inigualável ternura :<br />

“— Erotildes, tu já viste Deus?<br />

A morta se volta:<br />

— Ainda não. Decerto, só vou ver Ele quando me<br />

enterrarem como cristão.<br />

Rosinha limpa tremulamente as lágrimas do rosto com<br />

as pontas dos dedos.<br />

— Vou te pedir um favor...

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