24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Só, no silêncio morno e amigo do quarto, Noel lê o diário<br />

de Katherine Mansfield. O retângulo da janela aberta emoldura<br />

uma paisagem simples: ao longe um céu azul, liso e desbotado.<br />

Noel afunda mais na poltrona com a impressão de que<br />

Katherine Mansfield lhe fala de mansinho ao ouvido. É uma<br />

voz familiar, macia e cariciosa, voz de irmã mais velha.<br />

(Quando Querubina abriu a porta e perguntou “O senhor não<br />

vai descer para o chá?” — ele ficou a olhar para ela com os<br />

olhos espantados de quem vê assombração, testa franzida,<br />

fazendo um esforço doloroso para compreender. Que bicho<br />

estranho era aquele que estava ao pé da porta e que tinha<br />

falado? A que língua esquisita pertenciam aquelas palavras?<br />

“O senhor não vai descer para o chá?” Finalmente conseguiu<br />

traduzir as palavras da intrusa e o mais que logrou fazer foi<br />

um aceno negativo de cabeça.) Mas Katherine Mansfield lhe<br />

fala agora na linguagem das personagens dos contos da sua<br />

infância. Noel entende e sorri interiormente. Katie lhe conta<br />

do irmão que morreu na guerra. Uns meses antes estiveram<br />

juntos, passearam pelo jardim, à hora do crepúsculo. Duma<br />

pereira esbelta caiu uma pêra arredondada.<br />

— Ouviste, Katie?<br />

Era um ruído familiar que espertava neles recordações,<br />

ecos longínquos. As mãos de ambos percorreram a relva verde<br />

e úmida. O rapaz apanhou a fruta e inconscientemente, como<br />

em outros tempos, limpou-a com o lenço. Recordações do<br />

velho home de Montreal. Eram ambos crianças e brincavam no<br />

pomar. Levavam cestos para apanhar frutas. As peras lhes<br />

caíam em cima das cabeças, rolavam para o chão. As formigas<br />

corriam. Eram peras de uma cor viva, amarelo-canário,<br />

miudinhas. Katherine se apoiou no ombro do irmão. A noite<br />

desceu: o luar ficou um pouco mais profundo. As sombras<br />

sobre a relva eram longas e estranhas.<br />

Ela tremia.<br />

— Sentes frio?<br />

— Muito, muito frio.<br />

Depois que a guerra lhe matou o irmão, Katie escreveu<br />

no diário:<br />

“Por que não recorro ao suicídio? Porque sinto que tenho<br />

um dever a cumprir com relação ao tempo tão bonito<br />

em que nós dois estávamos vivos. Quero falar desse<br />

passado; ele queria, que eu lhe falasse. Combinamos<br />

tudo no meu quartinho alto de Londres.”<br />

Noel fecha o livro. Cerra os olhos e sente no quarto a<br />

presença mansa e sedativa de Katherine. Ela está ali na outra<br />

poltrona de veludo cor de vinho, a cabecinha desamparada de<br />

pássaro ferido atirada para trás, os olhos fechados, muito<br />

pálida. Está cansada, doente, vive a viajar de Londres para a<br />

costa da França, em busca de paz e sol. Um dia, numa casa de

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!