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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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vestido.<br />

Que perfume é este que a envolve como uma aura? Ele<br />

não o pode identificar. Um aroma tropical, quente, que<br />

provoca na gente um desejo mole, meio sonolento e<br />

abandonado.<br />

A orquestra toca um tango argentino. O bandônion marca<br />

o compasso arrastado. Salu e Chinita deslizam. Sob seus pés, o<br />

parquê é liso e rebrilhante como uma pista de gelo, E eles<br />

fazem figuras sinuosas, face, peito, ventre e coxas colados. O<br />

dedo polegar de Salu comprime fortemente a carne das costas<br />

de Chinita.<br />

— Vais ficar com a minha impressão digital... — diz ele<br />

de mansinho ao ouvido dela.<br />

Chinita sorri mas sem entender. Digital, digital, digital...<br />

Deve ser alguma coisa de dedo, porque ao dizer estas palavras<br />

ele apertou o polegar com mais força.<br />

— Tu te lembras daquele verso de Guilherme de<br />

Almeida? — continua ele. — Entre nós não há espaço nem para<br />

um beijo...<br />

Chinita sorri. Agora ela se sente à vontade porque<br />

conhece o poema. Levanta o rosto para o namorado e diz:<br />

— Não haverá mesmo?<br />

— Aqui na sala, talvez não... Mas quando é que vamos dar<br />

uma volta no parque?<br />

— Mais tarde... Tem paciência.<br />

O passeio no parque é uma obsessão do espírito de Salu.<br />

Ele formou um plano doido... Nem é bem plano... Um<br />

pressentimento, um desejo... Sei lá! Qualquer coisa há de<br />

acontecer no parque, seja como for. Hoje ou nunca. Salu não<br />

mede conseqüências nem quer pensar nelas Só continua a<br />

existir para ele a necessidade clamorosa de amar Chinita, de<br />

possuir Chinita, integralmente, de extorquir com violência ou<br />

persuasão todo, todo o gozo que porventura exista em<br />

potência neste corpo, todo, todinho, de maneira a não deixar<br />

se possível nem um restinho para os que vierem depois... O<br />

parque... Foi a idéia que o acompanhou durante as últimas<br />

horas do dia. O parque, a sombra das árvores, o parque...<br />

O último gemido do bandônion marca o fim do tango. Os<br />

pares se descolam. Ao afrouxar a pressão do abraço, Salu tem<br />

a impressão de que se separa duma parte de seu próprio corpo.<br />

E essa impressão corresponde a uma dor — dor física, de<br />

dilaceramento.<br />

Os homens batem palmas. As conversas se animam.<br />

— Então? — cicia Salu. — Passam dez das dez... Quando<br />

queres sair?<br />

Chinita pensa um segundo.<br />

— Às onze me espera na área do lado. Agora me dá<br />

licença que vou atender os convidados...<br />

Com um sorriso, despede-se, faz meia volta e sai na<br />

direção do hall. Salu acompanha-a com o olhar e fica a<br />

imaginar a carne que há por baixo daquele vestido de veludo

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