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atos. Um desejo que ele sempre repeliu — é absurdo! — como<br />
incestuoso. Quando vê Fernanda, tem vontade de se lhe<br />
entregar, como um órfão, deixar-se acariciar, abrir-se em<br />
confidências... Mas agora, ao sol, vestida de branco, rindo e<br />
quase a correr, Fernanda não convida a sentimentos<br />
fraternais...<br />
Noel procura afugentar o desejo, mas ao mesmo tempo<br />
não deixa de enxergar o absurdo de sua tentativa. Por que não<br />
desejá-la fisicamente? Por quê? Acaso ele não é um homem e<br />
Fernanda uma mulher? Não existe entre ambos o menor grau<br />
de parentesco. Teoricamente Noel justifica o desejo. Mas na<br />
prática, tudo mudaria...<br />
No entanto Fernanda poderia salvá-lo. Talvez lhe desse<br />
força para lutar. As suas experiências sexuais foram<br />
dolorosamente decepcionantes, tão decepcionantes e<br />
dolorosas que ele se havia encolhido e fugido ao convívio das<br />
mulheres. Fernanda podia ser a salvação. Em tudo. Por tudo.<br />
— Olha lá em cima! — exclama ela.<br />
Um avião do exército faz evoluções, vira cambalhotas,<br />
cai em folha morta, descendo a pouca distância do rio para<br />
depois subir como uma frecha.<br />
— Vamos sentar?<br />
Sentam-se, face a face.<br />
Como ele é frágil — pensa Fernanda — e que ar<br />
abandonado! Sente desejo de acariciá-lo como a um filho,<br />
como a um irmão. Ele é tão diferente dos outros...<br />
— Ontem estive lendo a Mansfield — diz Noel. — O<br />
diário...<br />
Fernanda sorri. Já estava custando virem os livros. Noel<br />
não passa dez minutos sem falar em literatura. Por quê? O dia<br />
está tão claro, a paisagem tão encantadora... Ela lê também,<br />
ama os livros, mas não se deixa escravizar por eles. Primeiro a<br />
vida. E se os livros oferecem interesse, ainda é por causa da<br />
vida.<br />
Olhando para o rio, Noel prossegue:<br />
— Que sensibilidade... A gente tem a impressão de que<br />
Katherine não era deste mundo. Uma fada... Um anjo...<br />
Qualquer coisa de aéreo... Uma nova encarnação de Ariel...<br />
Fernanda nunca leu a Mansfield. Noel conta. E contando<br />
se entusiasma. É como o menino deslumbrado a narrar o mais<br />
belo sonho da noite. Ela escuta.<br />
— Quando fico a pensar em certas coisas chego a ter<br />
medo do mistério da vida e das criaturas... Em 1923, quando eu<br />
estava ainda no ginásio lendo As Mil e Uma Noites nas horas<br />
de folga, Katherine Mansfield morria num retiro na França...<br />
Pensa bem nisso, Fernanda, é de assustar...<br />
O rosto de Noel tem uma expressão de ânsia. Fernanda<br />
não vê nenhum motivo de susto. Ele continua:<br />
— Dez anos depois é que Katherine passou a existir para<br />
mim... Uma revelação tão boa, tão harmoniosa, que me deixou<br />
aniquilado. Agora ela existe para mim, existe mesmo, está