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diz em surdina:<br />
— Eu soube que o seu marido está muito doente e que a<br />
senhora se encontra em dificuldades...<br />
— É.<br />
O rosto da dona da casa continua parado e inexpressivo.<br />
Com a mesma máscara poderia ter dito: “É mentira.”<br />
— Pois é... Vim oferecer os meus fracos préstimos...<br />
Na frente da dama de caridade a mulher do doente: alta,<br />
magra, imóvel e silenciosa. D. Dodó começa a ficar<br />
impressionada com esta cara pétrea, que não se altera, que<br />
não chora nem sorri. O silêncio se prolonga. Um gato espia na<br />
porta e sai de mansinho pelo corredor.<br />
— Trouxe-lhe alguma coisa...<br />
— Sim senhora...<br />
— Tem filhos, não é?<br />
— Tenho...<br />
— Quantos?<br />
— Dois.<br />
— Homens?<br />
A outra responde com um aceno de cabeça. D. Dodó abre<br />
o mais aliciante dos sorrisos.<br />
— Bom, se a senhora não faz objeção...<br />
Abre a bolsa e tira dela uma nota de vinte mil-réis. Um<br />
pensamento lhe assalta a mente: se os repórteres dos jornais<br />
entrassem de repente com fotógrafos...<br />
D. Dodó não gosta de ferir suscetibilidades: entregar o<br />
dinheiro na mão da outra, não fica bem. A criatura pode se<br />
ofender... Aproxima-se da mesa e com toda a delicadeza depõe<br />
sobre ela a cédula em que está estampada a imagem dum<br />
político que já tomou chá no seu palacete.<br />
Que linda cena para um instantâneo! Tão bonita na sua<br />
simplicidade comovente...<br />
“A caridosa dama no momento em que modestamente<br />
depunha sobre a mesa a nota de vinte mil-réis que iria<br />
mitigar por alguns momentos o sofrimento daquele<br />
casal desprotegido da sorte.”<br />
Monsenhor Gross havia de gostar tanto, lendo o jornal na<br />
manhã seguinte... Que pena os repórteres não saberem... Mas<br />
não! Sai, Satanás! A verdadeira caridade deve ser feita às<br />
escondidas, com modéstia. “Que a tua mão esquerda não saiba<br />
o que a direita faz.”<br />
A mulher do doente continua parada. Aquilo não significa<br />
nada para ela. Ela sabe que quando esta senhora perfumada<br />
for embora no seu automóvel de luxo, a vida da casa há de<br />
continuar como sempre: sujeira, miséria e doença. Ela há de<br />
ouvir todas as horas, todos os dias a tosse rouca do marido, há<br />
de sentir no ar um cheiro enjoado de remédio, há de ver os<br />
filhos atirados por aí, como porquinhos de quintal pobre. Os<br />
vinte mil-réis da senhora caridosa serão consumidos em