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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Prof. Clarimundo é a quantidade. E ele se exalta, acalora e<br />

fala para lhe denunciar a gravidade. Argumenta com uma<br />

energia que não revela nas coisas práticas da vida. Há meses<br />

que pensa em pedir um aumento de ordenado ao diretor do<br />

curso, mas lhe faltam coragem e entusiasmo. Há duas semanas<br />

que anda precisando dum par de ligas novo: mas ainda não<br />

teve ânimo para entrar numa loja e enfrentar os caixeiros. Há<br />

vários dias que anda pensando em queixar-se no restaurante<br />

da comida que lhe mandam, mas falta-lhe oportunidade,<br />

energia, determinação.<br />

Mas a quantidade é uma coisa diferente. O professor<br />

sente-se capaz de lutar por ela, de cometer excessos, de matar<br />

até, se for preciso.<br />

— Pois ora muito bem! Já que ninguém sa...<br />

O tinir duma campainha lhe corta a palavra. A hora do<br />

Latim passou. Fiel ao horário, o Prof. Clarimundo cala-se.<br />

Pronunciar uma palavra mais da lição seria ilegal. O professor<br />

não gosta de infringir as leis.<br />

A colmeia de novo se assanha. Conversas explodem,<br />

livres. Os rapazes se levantam.<br />

Um aluno se aproxima de Clarimundo, com ar misterioso.<br />

— Professor...<br />

— Que é que há?<br />

— Desculpe, o senhor se esqueceu da gravata...<br />

Clarimundo leva a mão ao colarinho e sente um<br />

desfalecimento. Realmente: esqueceu a gravata. Uma onda de<br />

sangue lhe tinge o rosto. E ele tem a impressão de que de<br />

repente se encontra nu, completamente nu, numa praça<br />

pública cheia de gente.<br />

Um ritmo que nasceu na África, gemeu nos porões dos<br />

navios negreiros, e se repetiu depois — saudade misturada<br />

com a tristeza do cativeiro — sob os céus da América, nas<br />

plantações, sendo mais tarde estilizado por músicos de uma<br />

outra raça sofredora e sem pátria — agora está arrastando os<br />

pares que dançam no salão do Metrópole.<br />

O jazz toca um blue. O mulato do saxofone solta gemidos<br />

dolorosos. O negro do banjo marca a cadência sincopada. O<br />

rapaz magro do clarinete ergue para o alto o instrumento<br />

rebrilhante e solta guinchos histéricos. O da pancadaria agita<br />

os braços, rufa no tambor, sacode guizos, bate nos pratos e no<br />

bombo, parece um polvo a dar trabalho a todos os tentáculos.<br />

No espaço que existe entre as duas fileiras de colunas<br />

brancas ondula e fervilha um mar escuro de cabeças com<br />

manchas coloridas. As grandes luzes claras estão apagadas. A<br />

sala se acha mergulhada numa penumbra. Um zunzum<br />

permanente anda no ar de mistura com um coquetel feito dos<br />

perfumes mais diversos a se avolumarem numa onda cálida.<br />

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