24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Noel sentia um vazio em sua vida. Em casa os dias se<br />

arrastavam monótonos. O pai fazia com relação a ele tímidas<br />

tentativas de carinho que morriam a um olhar frio da mulher.<br />

Às vezes Noel se atrasava na rua de propósito à hora das<br />

refeições, pois estas eram momentos de pouca ou nenhuma<br />

cordialidade. Honorato lia o jornal, enquanto as criadas<br />

traziam os pratos. Virgínia arreliava sem razão com o pessoal<br />

da casa. Os diálogos eram raros, difíceis, entrecortados.<br />

— Hoje falei com o Leitão Leiria...<br />

— Sim?<br />

Este sim de Virgínia era a maior, a mais magnânima das<br />

concessões. O silêncio caía de novo. Honorato aproximava a<br />

cara gorda do prato de sopa de onde subia um fino vapor. Noel<br />

não podia deixar de pensar: a cara inexpressiva dum Buda<br />

por trás duma nuvem de incenso.. . Sempre as imagens<br />

literárias! Por que não podia ele ser um bom animal, um<br />

homem simples e são que acha prazer na carne de gado e na<br />

carne das mulheres, na comida e no amor? Por que este medo<br />

da vida, esta distância dos homens, este apego aos livros, ao<br />

irreal, ao imaginado?<br />

Virgínia explodia em censuras sem fim. Não tinha<br />

vestidos... (Noel, Honorato, as criadas — todos sabiam que seu<br />

guarda-roupa estava cheio de vestidos novos e caros.) Faltavalhe<br />

uma geladeira maior, um aspirador de pó, um rádio... Os<br />

criados eram desatenciosos e lerdos. E Honorato, um águamorna,<br />

um desmoralizado que não se fazia respeitar. E por<br />

falar em desmoralizado, quando era que o nosso mariquinhas, o<br />

Noelzinho do papai, ia começar a trabalhar? Para que tinha um<br />

diploma de bacharel em Direito? Para que, se vivia de<br />

mesadas?<br />

Noel comia em silêncio, quase sempre enfastiado. Finda<br />

a refeição ganhava a rua. Ao meio-dia e a tarde ia esperar<br />

Fernanda à saída da casa em que a moça trabalhava. A<br />

amizade da companheira de infância era a coisa melhor que<br />

ele tinha.<br />

Agora, nesta manhã de maio, Noel recorda o passado,<br />

mergulha nos próprios pensamentos, esquecendo os seios<br />

abundantes de Querubina, os seus braços gordos, a sua<br />

presença incômoda, e tudo mais que o cerca nesta sala hostil<br />

sem calor de lar.<br />

— Seu Noel!<br />

Ele ergue os olhos. De testa franzida Querubina repete a<br />

pergunta:<br />

— Pouco café ou muito café? Credo! Já perguntei três<br />

vezes.<br />

— Pouco.<br />

Noel serve-se de açúcar, distraído. Honorato entra e<br />

senta-se à mesa.<br />

— Bom dia, meu filho.<br />

— Bom dia.<br />

— Dormiste bem?

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!