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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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trincheiras e por fim: carga de baioneta.<br />

Vai ao telefone, pede ao centro da loja ligação para a<br />

sua casa. Alguns segundos depois a voz de Dodó viaja pelo fio.<br />

— Meu amor, és tu? Comunico-te que a recomendada de<br />

Monsenhor Gross já está colocada.<br />

Dois beijos estralados que partem simultaneamente de<br />

cada extremidade do fio pingam o ponto final ao rápido<br />

diálogo telefônico.<br />

Virginia não acha paradeiro em casa. A solidão a sufoca.<br />

Saudade do sol, saudade de vozes humanas. Tem a impressão<br />

de estar num presídio. Caminha do quarto para a sala de<br />

jantar, desta para o hall, do hall para o escritório do marido,<br />

do escritório para o living. Abre livros e revistas para tornar a<br />

fechá-los logo depois com impaciência. Senta-se, ergue-se de<br />

novo. Liga o rádio para verificar em seguida que a estação<br />

local ainda não começou a irradiar.<br />

Que fazer? Não há remédio senão ficar deitada, parada,<br />

pensando. Estende-se no divã. Vem da cozinha um cheiro<br />

adocicado de carne assada. Estes cheiros domésticos a<br />

mareiam. O cheiro do marido, o cheiro das criadas, o cheiro da<br />

cozinha, o cheiro especial de cada peça da casa... Tudo sempre<br />

igual, repetido, sem surpresa. Eternamente a rotina familiar, o<br />

horário invariável, os mesmos assuntos e probleminhas...<br />

E chove por cima de toda esta chatice. Chove sem a<br />

menor trégua.<br />

Na varanda Querubina põe a mesa para o almoço. Noca<br />

passa por uma porta carregando pratos, com o seu caminhar<br />

de angolista. Virgínia tem vontade de atirar-lhe um chinelo na<br />

cabeça. Um bando de fêmeas inúteis e indecentes, ganhando<br />

um ordenado mensal para não fazer nada, para andar se<br />

esfregando no chofer, no guarda-civil, no homem do gelo...<br />

Um rumor. Virgínia volta a cabeça. Noel acaba de entrar.<br />

Mãe e filho entreolham-se em silêncio. Virgínia desvia o olhar.<br />

Noel fica junto duma prateleira de livros, a ler os títulos.<br />

Na presença do filho, Virgínia lembra-se de Alcides. São<br />

da mesma altura, e têm o mesmo porte. Por um instante ela<br />

vislumbra o seu próprio ridículo. Mais tarde ou mais cedo<br />

aquilo tem que acabar. Um capricho? Talvez? Mas por<br />

enquanto é uma obsessão. Depois, tudo conspira contra ela: as<br />

pessoas da casa, o tempo, a chatice da vida, a imbecilidade<br />

espessa do marido, a frieza do filho — tudo. Ela fica sem<br />

defesa. Se ao menos tivesse uma ocupação... Uma vez chegou a<br />

sugerir a Honorato que fossem viajar. Buenos Aires,<br />

Montevidéu, ou Rio... Mas ele vem sempre com a desculpa dos<br />

negócios e ela continua dentro desta prisão enervante, com o<br />

relógio a dizer em surdina que o tempo passa, com os espelhos<br />

a gritarem que ela envelhece. As criadas a miram com surdo<br />

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