You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
goteiras menores, caindo regularmente contra o fundo das<br />
panelas, produzem um som cavo de acompanhamento.<br />
Poleãozinho sentado na cama e especado entre<br />
travesseiros, desenha bonecos com um toco de lápis num<br />
pedaço de papel de embrulho. Um círculo com dois pingos e<br />
um traço dentro, um risco vertical espetando o círculo, mais<br />
dois riscos — um homem. O homem é Tom Mix. Falta o cavalo.<br />
Cavalo é mais difícil de desenhar. A língua de fora, Napoleão<br />
risca o que para ele é a imagem de um cavalo. Pronto! Tom<br />
Mix vai montar no seu pingo e dar tiros nos bandidos que<br />
roubaram a mocinha.<br />
A chuva bate contra a vidraça. Uma luz cinzenta,<br />
pegajosa e fria, invade o quarto. Sentada na cama,<br />
remendando uma camisa de dormir, Laurentina bate queixo.<br />
Novas goteiras rompem. Já não há mais bacias nem<br />
panelas para aparar a água. Laurentina se deixa ficar onde<br />
está, desalentada. O soalho da varanda vai ficando aos poucos<br />
alagado. A música dos pingos continua, cada vez mais forte.<br />
João Benévolo se enfurna no quarto, fugindo à<br />
inundação. Faz de conta que está na China. Um aventureiro<br />
inglês... O Rio Amarelo cresce, inundando as margens. O<br />
aventureiro sobe para o seu iate, (João Benévolo sobe para<br />
cima da cama.) Capitão, faça andar as máquinas. Todos a<br />
postos! E o iate começa a trepidar, a âncora sobe, a hélice<br />
gira. O barco aventureiro se vai... Pelo rio passam juncos com<br />
velas cor de bronze. Chineses de chapéus cônicos remam com<br />
longos remos. Nas margens erguem-se pagodes. A bela princesa<br />
que o explorador inglês vai libertar chama-se Jade.<br />
Napoleão desenha uma casa com a chaminé a fumegar.<br />
Um coqueiro do lado. Tom Mix chega, bate na porta... (As<br />
figuras continuam imóveis, mas na imaginação de Poleãozinho<br />
elas ganham movimento, voz, vida) Pan-pan-pan! Quem é lá?<br />
Aqui é Tom Mix! Abra essa porta senão eu meto bala!<br />
Laurentina espeta a agulha na ponta dum dedo. Perdeu o<br />
dedal. Seus olhos estão anuviados. “Estarei precisando de<br />
óculos? Era só o que faltava...” Suspira baixinho, e vai fazendo<br />
a agulha varar a fazenda, distraidamente enquanto o seu<br />
pensamento voa...<br />
No tempo em que morava com as tias, era como uma<br />
princesa. Não trabalhava, vivia à janela, ia ao cinema, tinha<br />
roupas. E era tão boba que se queixava, julgando-se uma pobre<br />
mártir... Agora o que ela tem é frio, medo, um marido sem<br />
coragem nem energia, um filho doente, uma casa onde chove<br />
como na rua, dívidas e esta vontade de nunca ter nascido...<br />
Lá fora a chuva continua a chiar. As goteiras tamborilam<br />
na varanda. A parede do quarto é um grande mapa branco com<br />
ilhas e continentes escuros de umidade. De onde será que vem<br />
este ventinho fino de gelo?<br />
— Estará aberta alguma janela, Janjoca?<br />
João Benévolo alça para a mulher uns olhos sem vida e<br />
responde: