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Agora em torno dela — o silêncio, o frio, a noite e a<br />
carta.<br />
A luz do luar se mistura com a do lampião da varanda de<br />
João Benévolo. Cheiro de umidade. Frio.<br />
Ponciano, palito no canto da boca, fala do tempo,<br />
indiferente.<br />
— Ninguém dizia que ia parar a chuva de repente. Este<br />
tempo ninguém sabe direito.<br />
Laurentina sacode a cabeça. João Benévolo tem vontade<br />
de esbofetear o outro. Ponciano continua:<br />
— Eu me lembro que no inverno de 1912...<br />
O que ele diz depois João Benévolo não escuta porque<br />
agora anda perdido no seu mundo impossível. Uma dor no<br />
estômago fá-lo voltar à realidade.<br />
— É o diabo... — está dizendo Ponciano.<br />
Napoleãozinho choraminga no quarto. O gramofone do<br />
vizinho começa a tocar. Laurentina suspira.<br />
Sempre a fome — pensa João Benévolo — a gente é<br />
como um saco sem fundo. Não há comida que chegue. Que bom<br />
se inventassem um meio da gente não precisar comer! Ficava<br />
tudo mais fácil, não havia tanta necessidade de trabalhar.<br />
Ponciano coca Laurentina com o seu olhar frio. Ela está<br />
mais magra, mais abatida. Mas é a mesma. O jeito de falar<br />
fechando os olhos, os gestos lentos, a voz de nenê dengoso. Se<br />
a situação dura, ela se acaba. Mas antes que ela se acabe há<br />
de vir para ele. Agora é preciso ter paciência. Ele podia<br />
arranjar um emprego para o marido. Mas melhor é deixar<br />
assim, para Tina ficar cansada. Um belo dia ele chega e diz:<br />
“Laurentina, o Janjoca não presta, deixe ele. Isso de viver<br />
assim na miséria é o diabo. Venha comigo. Pode trazer o filho,<br />
não faço caso.” Ela não resiste e vem. Paciência. Quem<br />
esperou até agora, pode esperar mais.<br />
Silêncio na varanda, só quebrado pela música distante do<br />
gramofone.<br />
— Deve ter uma fresta na janela — diz Laurentina<br />
tremendo de frio. — Estou sentindo uma corrente de ar.<br />
João Benévolo encolhe os ombros.<br />
— Corrente de ar é o diabo...<br />
Outra vez o silêncio.<br />
Ponciano olha para Laurentina e faz planos. Manda botar<br />
mais uma cama no quarto. Ah! É verdade! Mais outra para o<br />
guri. Bom. Compra-se um guarda-roupa barato, uns quarenta<br />
mil-réis... ou sessenta que seja... Mando pedir mais um mil-réis<br />
de comida no restaurante. Pode ser que a dona da casa dê o<br />
estrilo... Que se lixe! Eu pago. Se ela não se conformar, perde o<br />
inquilino.<br />
Os minutos passam.<br />
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