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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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princípio teve ímpetos de ir embora do escritório<br />

imediatamente, sem esperar o prazo, sem aceitar a<br />

gratificação. Mas depois pensou na mãe, no irmão, nos<br />

compromissos, e ficou. Agora tem de procurar trabalho em<br />

silêncio, esconder tudo da mãe e do irmão. Se a mãe soubesse,<br />

desandaria a chorar, agourando desastres tremendos, fome,<br />

miséria, morte. Fernanda está resolvida a guardar segredo a<br />

todo o custo. Por isso sorri.<br />

O silêncio se prolonga. Pedrinho come, pensativo, D.<br />

Eudóxia empurra o prato vazio. Estará farejando alguma<br />

desgraça? Tem os olhos na porta.<br />

— Se o seu Maximiliano morrer eu tenho de ir ao velório.<br />

Espanto de Fernanda:<br />

— Mas a troco de que veio essa idéia?<br />

— Ué! A gente precisa estar preparada.<br />

— Mas ele não morreu.<br />

— Garanto que morre hoje.<br />

— Pode ser que não morra!<br />

Outra vez o silêncio. Fernanda bate com a colher na<br />

mesa.<br />

— Vamos, Pedrinho, acorda! Parece que andas<br />

apaixonado!<br />

Pedrinho sorri sem vontade. Ouve-se agora nitidamente o<br />

barulho da chuva, que cai com mais força. O gramofone do<br />

vizinho começa a tocar a valsinha de todos os dias.<br />

Os Leitão Leiria conversam.<br />

— Que dizes? — pergunta D. Dodó ao marido.<br />

— Muito bem, minha querida. Tiveste apenas um pequeno<br />

engano. D’Annunzio não é músico.<br />

— Não é músico? Ora! Eu pensava...<br />

— D’Annunzio é poeta e prosador.<br />

— Que pena! E o resto?<br />

— O resto está admirável.<br />

— E ali naquela pergunta do traço característico do meu<br />

caráter... qual daquelas respostas tu achas que eu devo dar?<br />

— Todas, Dodó, todas aquelas virtudes tu tens em<br />

quantidade.<br />

D. Dodó sacode a cabeça, sorrindo.<br />

— Não digas isso, meu filho.<br />

Vera contempla os pais em silêncio. Um observador<br />

agudo veria desdém, zombaria nestes olhos claros e frios. O<br />

respeito que Vera tem pelos autores de seus dias é um<br />

respeito muito longínquo e divertido. Intimamente, sem nunca<br />

dar expressão à sua crítica, ela acha ridículo os exageros<br />

caritativos da mãe, o afã de aparecer como líder de todos os<br />

movimentos de beneficência, a ânsia de imitar Santa<br />

Teresinha. Vê, julga e cala. Não adianta falar. Vai à igreja<br />

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