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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Branquinha baixa a cabeça: seus dedos tornam a dançar<br />

sobre o teclado.<br />

Fernanda pensa em Noel. Naturalmente hoje à noite ele<br />

tornará a aparecer. Conversas na escada, como sempre: livros,<br />

discos... Silêncios longos. O ruído da cadeira de balanço na<br />

varanda. De quando em quando, a voz de D. Eudóxia, saindo da<br />

escuridão. E o rosto pálido de Noel, os seus olhos tristes, e<br />

aquela coisa que ela pressente, enorme e reveladora, aquela<br />

confissão que ele não tem coragem de fazer, que talvez não<br />

faça nunca.<br />

Outra vez a voz pastosa:<br />

— Fernanda, você já aprontaste aquela carta para o<br />

diretor do Correio do Povo?<br />

Fernanda se volta, contrariada. Não aprontaste. Vai<br />

fazer agora.<br />

Senta-se à mesa.<br />

Quando acabará esta situação? Não se terá direito nem a<br />

um pouquinho de felicidade?<br />

101<br />

Virgínia abre os olhos dentro da penumbra do quarto.<br />

Quanto tempo dormiu? Duas horas? Três? Nem sabe... Só<br />

tem certeza de que dormiu porque se recorda vagamente de<br />

que houve um período de esquecimento absoluto, de repouso e<br />

de treva.<br />

Haverá sol lá fora? Ou já terá caído a noite?<br />

Alcides já deve estar enterrado. Tudo acabou... ou foi<br />

tudo um pesadelo?<br />

Virgínia não tem coragem de se levantar. Corpo dolorido,<br />

lábios ressequidos. Impressão de febre, opressão no peito,<br />

gotas frias de suor na testa, na ponta do nariz, no buço.<br />

Os objetos familiares se vão definindo aos poucos dentro<br />

da sombra do quarto.<br />

E ela sente vontade de dormir de novo, dormir muito<br />

para não acordar mais ou despertar num mundo diferente.<br />

Passam-se os minutos.<br />

E de repente a velha sensação de sufocamento e o velho<br />

medo da solidão tomam conta dela.<br />

Virgínia salta da cama apressada e vai abrir a janela. A<br />

luz da tarde jorra para dentro do quarto.<br />

O céu, o sol, as casas, as pessoas, os bondes, movimento,<br />

ruído... Sim, graças a Deus está viva. Viva!<br />

E para ter uma certeza mais funda de que tudo não<br />

acabou, abre a porta do quarto e grita para baixo:<br />

— Querubina! Noca! Venham cá. Depressa!<br />

102

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