Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
— Veja só...<br />
É a única coisa que encontra para dizer.<br />
Mas D. Maria Luísa não está satisfeita. Ainda não esgotou<br />
o tema desgraça. É preciso descobrir nele mais motivos de<br />
tristeza.<br />
— O Manuel anda magro...<br />
Zé Maria sorve a última colherada de sopa.<br />
— Está sem cor... — prossegue a mulher. Seguindo um<br />
velho hábito, Zé Maria afasta de si o prato vazio.<br />
— Não quer estudar...<br />
Zé Maria ensaia uma desculpa:<br />
— Ora Maria Luísa, quando a gente é rapaz...<br />
Mas nos olhos da mulher ele lê uma censura que não<br />
acha expressão verbal. A voz dolorida ganha intensidade.<br />
— Severina, traga os outros pratos.<br />
Mesmo dando ordens de caráter doméstico a sua voz é<br />
uma lamúria.<br />
Pausa.<br />
Zé Maria sente um alívio, julgando que as lamentações<br />
findaram.<br />
Os martelos continuam a bater, em golpes rítmicos que<br />
despertam ecos pela casa toda. E ao compasso das marteladas,<br />
a voz cansada (que o coronel há quase trinta anos ouve, todos<br />
os dias, todos os momentos, queixando-se sempre, sempre,<br />
sempre) a voz machucada vai dizendo:<br />
— Agora tudo mudou. Eu já não tenho mais marido nem<br />
filhos...<br />
Mas é melhor calar. Faz-se um silêncio pesado, um<br />
silêncio cheio de censuras recalcadas, um silêncio dentro do<br />
qual paira um enorme mal-estar.<br />
Chegam novos pratos. A feijoada e o assado criam um<br />
ambiente de paraíso para o coronel. Ele esquece tudo e é com<br />
uma alegria quase infantil que trincha a carne tostada e<br />
suculenta.<br />
Mas D. Maria Luísa se sentiria supinamente infeliz se não<br />
tivesse motivos para ser infeliz. Por isso rumina todo o seu<br />
ressentimento, recorda, compara, imagina...<br />
Em Jacarecanga a vida da família Pedrosa era quase<br />
patriarcal. Moravam numa casa modesta de porta e quatro<br />
janelas. Tinham um jardim com flores, um quintal com<br />
laranjeiras e pessegueiros: na horta, D. Maria Luísa cuidava<br />
com carinho das couves e dos repolhos. (Quando a peste bateu<br />
nos pessegueiros ela achou um motivo admirável para se<br />
sentir desgraçada.) Os vizinhos — o Zenóbio Pinto, escrivão, e a<br />
mulher, dum lado; o Carvalho da Farmácia, viúvo com duas<br />
filhas solteironas, do outro — eram gente boa e serviçal.<br />
Quando se apertava pela falta de açúcar ou de batatas, D.<br />
5