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Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

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Laurentina, porém, permanece imóvel e calada.<br />

— Se o Ponciano vier hoje, — diz ele com voz sem cor —<br />

eu devolvo os dezenove mil-réis e digo que vou pagar o que<br />

falta quando encontrar emprego.<br />

Com a ponta dos dedos bota a cédula no bolso, soltando<br />

um suspiro. E sai a assobiar o Carnaval de Veneza. De tristeza,<br />

de vergonha.<br />

Virginia Madeira tira da gaveta do penteador, com o<br />

cuidado de quem lida com um escrínio de jóias preciosas, uma<br />

caixinha de lata verde em que se lê em letras douradas:<br />

Pérolas Juventus. No lado de dentro da tampa os fabricantes<br />

fazem promessas tão tentadoras como a que Mefistófeles fez<br />

a Fausto. Os olhos de Virgínia passam depressa por cima de<br />

vários períodos de letras miudinhas em que ressaltam as<br />

palavras hormônios, secreções das glândulas endócrinas para<br />

se deterem interessados e fixos neste trecho:<br />

“Quem tomar as Pérolas Juventus de acordo com a bula,<br />

verá no fim do primeiro mês que sua pele ganha uma<br />

frescura nova, as rugas começam a desaparecer, os<br />

seios endurecem...”<br />

Um ronco mais forte de Honorato faz Virgínia<br />

sobressaltar-se. Ela se volta para a cama. De barriga para o ar,<br />

roncando como um porco, o marido dorme. O ventre bojudo<br />

sobe e desce ao compasso da respiração. A combinação é<br />

curiosa: o acolchoado amarelo, o pijama listrado azul e branco,<br />

a cara gorducha, lustrosa e vermelha de Honorato, o<br />

travesseiro muito branco, o escuro polido da madeira da cama,<br />

e atrás, contra a parede, o panneau de seda negra, com<br />

desenhos azuis.<br />

Em obediência à bula, Virgínia toma uma pérola. Sentase<br />

na frente do espelho e se encontra de repente diante da sua<br />

verdadeira personalidade: Virgínia Matos Madeira, de quarenta<br />

e cinco anos, um resto muito pálido de beleza no rosto,<br />

princípios de rugas e de duplo-queixo, alguns fios de cabelos<br />

brancos a aparecerem malvados, iludindo a vigilância das<br />

tinturas. Não é a Virgínia que ela sente ser sempre que está<br />

longe dos espelhos. Porque no fundo ela permanece a mesma<br />

rapariga de vinte anos que chamava a atenção nos bailes, “que<br />

vendia caro os seus olhares”, que rejeitava namorados, sendo o<br />

orgulho da sua mãe e da sua rua. Os anos passaram, Noel<br />

nasceu, cresceu, formou-se, Honorato engordou, ganhou<br />

dinheiro e perdeu o cabelo, a família mudou três vezes de<br />

casa... Durante duas casas durou o reinado despótico da preta<br />

Angélica. Virgínia tinha horror às responsabilidades de mãe de<br />

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