24.11.2018 Views

Caminhos Cruzados - Erico Verissimo

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Noel, que só tomou um gole de café, levanta-se devagar<br />

e, sem olhar para a mãe, retira-se da sala.<br />

Virgínia fica sorrindo.<br />

Com a boca cheia de pão, as bochechas trêmulas,<br />

Honorato reúne toda a coragem que lhe resta, para dizer:<br />

— Ora, Virgínia!<br />

A luz da manhã alaga o quarto de dormir do apartamento<br />

n.° 140, no 10.° andar do Edifício Colombo.<br />

Sobem da rua ruídos surdos e gritos destacados — vozes<br />

das criaturas de aço e das criaturas de carne.<br />

Os minutos passam. Os ruídos aumentam. O sol bate em<br />

cheio no rosto de Salustiano Rosa, uma máscara morena de<br />

traços nítidos: pálpebras lustrosas caídas, sobrancelhas grossas<br />

e eriçadas, nariz reto a destacar-se decisivo, do rosto onde a,<br />

barba começa a aparecer em pontinhos azulados. A boca<br />

entreaberta mostra dentes claros e regulares, que faíscam.<br />

Salustiano desperta, mal abrindo os olhos e sentindo a<br />

quentura do sol. Está com os braços estendidos em cruz e aos<br />

poucos vai tendo consciência do contato de um corpo<br />

estranho, mole e arfante, sob o dorso de sua mão esquerda.<br />

Volta a cabeça e olha. A seu lado urna rapariga loura dorme<br />

mansamente. Sua mão está aninhada entre os seios dela.<br />

Durante alguns segundos Salustiano procura compreender<br />

aquilo, chamando as recordações da noite. E, numa síntese<br />

mágica, a história lhe vem à mente...<br />

A noite que ameaçava terminar sem uma aventura... Os<br />

efeitos do uísque. A lua, a rua deserta, o vulto do guarda, na<br />

esquina... A rapariga loura que passava sozinha... Psst! Os olhos<br />

verdes que se fixaram nele, o sorriso animador... Depois, as<br />

palavras sem sentido e os gestos que diziam mais que as<br />

palavras. O elevador subindo — 1.°, 2.°, 3.° andar... A rapariga<br />

sorrindo em silêncio... A parada brusca no 10.° andar. O<br />

corredor, com uma lâmpada acesa lá no fundo, o tapete<br />

abafando os passos, a pressão tépida das mãos dela... O n.° 140<br />

pintado na porta em algarismos brancos. Dentro do quarto, a<br />

quietude e o luar. Pouco depois as roupas — as dele e as dela<br />

— uma a uma caíram misturadas sobre a poltrona. Por fim<br />

aquela rapariga de pernas esbeltas, deitada na cama, imóvel, à<br />

sua espera...<br />

Agora a mulher também está de olhos abertos, caçando<br />

lembranças.<br />

Salustiano senta-se na cama e olha tranqüilo para a<br />

companheira da noite. Uma mecha de cabelos lhe cai sobre a<br />

testa. Os olhos de ambos se encontram. A rapariga sorri.<br />

Salustiano faz o mesmo. Ergue-se. O pijama de seda (“Como foi<br />

que eu tive a lembrança de vestir o pijama?”) dança-lhe<br />

frouxo e amarfanhado no corpo musculoso.<br />

3

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!