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João Benévolo recuou, assustado, correu para a sala de<br />
jantar e entrincheirou-se atrás da mesa. Ficou ali de olho<br />
arregalado, branco, sem fala, trêmulo. Nunca tinha visto a<br />
mulher daquele jeito. Ela nunca dizia nomes, nunca se<br />
revoltava. E agora, de repente, sem mais nem menos...<br />
Depois de soltar aquela coisa sufocante, Laurentina<br />
atirou-se sobre a cama e ficou chorando sentidamente.<br />
Napoleãozinho desatou também o choro.<br />
João Benévolo agora espera, o coração batendo com<br />
força, desgraçado, desamparado, sem voz nem ação.<br />
Os minutos passam. Ele vai se aproximando da mulher,<br />
devagarinho, receoso. O corpo de Laurentina está sacudido de<br />
soluços.<br />
— Tina... Tina... Que foi que eu fiz? — E a sua voz é<br />
trêmula, humilde, abjeta, a voz dum derrotado, do homem que<br />
perdeu o último vestígio de orgulho. — Que foi, meu bem?<br />
E no momento mesmo em que repete a pergunta, João<br />
Benévolo compreende tudo. Não precisa que ela responda. Ele<br />
sente tudo, embora preferisse não sentir. O dinheiro acabou.<br />
Onde se vai arranjar comida? Os dias passam e ele continua<br />
desempregado sem nenhuma esperança. Só mentiras e<br />
promessas que não se cumprem. Os credores batem à porta a<br />
todo o instante. Já não há mais desculpas a inventar. Qualquer<br />
dia a velha Mendonça bota os trastes deles no olho da rua.<br />
Não, não precisa que ela diga. Ele sabe. E como sabe, não<br />
torna a perguntar.<br />
— Tu vais ver — promete. — Hoje volto empregado ou<br />
então não volto mais.<br />
Quisera dizer estas últimas palavras com energia, como<br />
as personagens de romance nos momentos bem dramáticos.<br />
Mas não pode, falta-lhe força, falta-lhe vontade.<br />
Laurentina e Napoleão continuam a chorar.<br />
João Benévolo joga o chapéu e sai para a rua em<br />
silêncio.<br />
Quando, ao despertar, encontra à cabeceira uma enorme<br />
corbelha em forma de coração, D. Dodó tem um sustinho<br />
agradável. Olha para o lado. O marido não está na cama. E<br />
num instante ela compreende que hoje é o dia de seu<br />
aniversário e que aquele coração florido é uma delicadeza do<br />
seu Teotônio. Que lindo!<br />
Ergue-se e vai acariciar as flores. No cesto há um<br />
pacotinho feito com papel de seda cor-de-rosa e amarrado<br />
com uma fitinha da mesma cor. D. Dodó desata a fita,<br />
desdobra o papel e descobre um estojo de veludo azul. Abre-o.<br />
Uma faiscação multicor contra um fundo de seda branco...<br />
Uma cruz de brilhantes! Ai! O que ela tanto desejava! Pregado<br />
ao forro da tampa, um cartãozinho pequeno com estes dizeres:<br />
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